“A origem”: resenha tuitada

André Venâncio
7 min readOct 23, 2021

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Entre os dias 5 e 22 deste mês (outubro/21), fiz um total de 36 postagens em minha conta no Twitter (@AndreLVenancio) sobre o livro A origem (dados abaixo), na medida em que o ia lendo. A ideia era usar isso como base para o caso de eu vir a escrever uma resenha decente, e ter pelo menos algo registrado caso eu não a escreva. Ainda não me decidi, mas vou deixar os tuítes aqui porque despertaram o interesse de algumas pessoas. A edição é mínima: retirei algumas abreviações, acrescentei poucas palavras entre colchetes onde achei que algum incremento de clareza era necessário e apenas dois tuítes aparecem fora da ordem cronológica em comparação com as postagem originais.

Comecei a ler A origem: quatro visões cristãs sobre criação, evolução e design inteligente (Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019), com Ken Ham [criacionismo da terra jovem], Hugh Ross [criacionismo (progressivo) da terra antiga], Deborah Haarsma [criação evolucionária]e Stephen Meyer [design inteligente]. Devo fazer uma resenha curta quando terminar, mas talvez dê spoilers por aqui. Interessa?

Fiquei surpreso com a quantidade de reações ao tuíte anterior. Obrigado! Como diria Dom Pedro I, diga ao povo que tuito. O meio é limitado, mas acho que dá pra compartilhar umas impressões aqui. Não prometo nada organizado. Serão pensamentos soltos mesmo. Vamos lá!

Tente narrar uma luta de boxe que tem quatro lutadores no ringue, cada um por si. Não dá. Livros como A origem são por natureza muito limitados e deixam milhares de pontas soltas. Vou me concentrar no que é geral e essencial. Quando mencionar detalhes, será apenas como ilustração.

A defesa de Ham da terra jovem é bem mais elaborada e forte na parte bíblica que na científica; era esperado. Minha surpresa (positiva) foi pelo grau de compreensão de princípios de cosmovisão cristã. Mas sua apreciação do secularismo ainda é pobre, embora boa pela abrangência.

Não digo que Ham é bom em se comunicar com gente de fora de seu círculo, mas não é ruim a ponto de justificar as terríveis incompreensões que aparecem nas respostas de Ross e, ainda mais, Haarsma. São pontos cegos deles mesmos. Cosmovisão cristã passa longe ali. Sutileza também.

O formato não permite responder a tudo, claro, mas só Ross se esforçou para dar uma resposta abrangente à exposição de Ham. Haarsma e Meyer foram seletivos demais, i.e., ignoraram partes relevantes para a abordagem que seguiram na resposta. Nesse sentido, foram leituras injustas.

Concordo com Ham que devemos ser mais críticos da ciência; vou até mais longe que ele nisso. Mas não acho que ele entende (ou sabe explicar) as razões concretas disso. Sua percepção do problema cultural e epistemológico da ciência moderna é superficial. É seu principal problema.

Ham fala em viés religiosamente motivado na interpretação da evidência científica, e Haarsma (p. 71) toma isso como um insulto ao profissionalismo deles. Eis o nível da cosmovisão cristã dela. O que ele diz devia ser óbvio mesmo pra quem não aceita as implicações que ele defende.

Na introdução, J. B. Stump diz que nenhum dos coautores é teólogo, mas “adquiriram fluência em temas teológicos” (p. 22). Não vi muito disso em nenhum dos quatro. O amadorismo teológico deles salta das páginas o tempo todo. E nem é questão de concordar ou não com o que estão dizendo.

Ross (o astrônomo, não o paleontólogo) parece ser o melhor dos quatro na percepção da importância de uma compreensão profunda e abrangente do que a Bíblia diz sobre a natureza. Se ele faz isso bem, é outra história, mas está em vantagem: todos os outros têm foco restrito demais.

A exegese de Ross me parece vaga e sem rigor, mas é instigante e bem mais honesta que os malabarismos do “criacionismo evolucionário” (Walton e afins): não há o propósito a priori de expandir possibilidades hermenêuticas a qualquer custo ou de agradar o mundo científico secular.

Em termos dos motivos religiosos básicos de Dooyeweerd, o problema da conciliação entre fé cristã e evolução é que ela distorce o equilíbrio entre eles: a queda é minimizada e a distinção entre os outros dois [criação e redenção] fica borrada. Há um tanto disso também no criacionismo progressivo.

O argumento científico de Ross é mais bem desenvolvido, a parte mais convincente. A parte bíblica é mais fraca, com pressupostos que precisam ser melhor defendidos. Maior mérito: grande empenho em obter um todo consistente. Maior defeito: temperamento um tanto racionalista.

Ham se concentrou na defesa bíblica, com uma exposição científica sumária e cheia de notas de rodapé com referências para aprofundamento. Ross fez uso mais uniforme do espaço e foi mais comedido nas notas. Uma avaliação justa do mérito deve considerar as diferenças estratégicas.

A resposta de Ham a Ross foi um pouco mais implicante que o necessário e, como em seu próprio capítulo, deu mais ênfase à discussão teológica que à científica. Levantou objeções muito pertinentes nesse campo, mas não creio que tocou nos problemas centrais, que são de cosmovisão.

A crítica de Haarsma a Ross é contundente em vários pontos importantes. Em outros, forte apenas retoricamente. Injusta e incoerente em alguns. Os dois são meio cientificistas, mas em direções diferentes. A posição de Ross é delicada, como tendem a ser as tentativas de equilíbrio.

Meyer, o defensor do design inteligente, é pessoalmente um criacionista da terra antiga. Por isso, aproveitou o espaço de sua resposta a Ross para atacar a descendência comum, que só Haarsma defende. O texto foi excelente. Só achei o procedimento duvidoso do ponto de vista ético.

Livros como A origem são introdutórios, superficiais e retóricos por natureza. Muitos argumentos e respostas são velhos. Por isso, dificilmente mudam a posição de quem já tem familiaridade com o debate. Mas muita coisa se aprende nos detalhes. É um bom lugar para refinamentos.

Como esperado, Haarsma é a mais satisfeita com o secularismo em ciência. E a mais pobre de cosmovisão cristã e mesmo sociologia do conhecimento. Efeitos noéticos do pecado, estruturas de plausibilidade, atitude pré-teórica… nada disso jamais lhe passou pela cabeça. Triste cena.

O capítulo de Haarsma é o mais didático até aqui. A tal ponto que ela parece estar em uma aula de ensino médio, não em um debate acadêmico. Na verdade, ela não parece mesmo crer na seriedade intelectual dos antagonistas. É cordial, mas os sinais de desprezo aparecem o tempo todo.

Haarsma é a debatedora de quem mais discordo, mas, com as ressalvas que já fiz, apreciei muito a pessoalidade com que escreveu. Pessoalidade em ciência é sempre bom. E, mais que isso, há certa leveza. Sem dúvida uma presença feminina fez bem ao livro nesse sentido.

É muito empobrecedor que os quatro debatedores sejam basicamente cientistas. Só um (Meyer) tem familiaridade com filosofia da ciência. Nenhum filósofo, teólogo ou historiador, ninguém sequer com boa cultura geral. É emblemático do buraco em que está a reflexão cristã sobre ciência.

Alguns temas me surpreendem em A origem por sua quase completa ausência. O principal é a mortalidade humana, início e implicações para nossa concepção de ciência e natureza. Haveria muito a discutir sobre isso, e com profundas consequências. Mas só há um silêncio desanimador.

[Em resposta a um comentário ao tuíte anterior:] Ser introdutório não é desculpa. É agravante. A proposta do livro é apresentar os motivos em favor de cada posição e como ela responde a perguntas importantes. As discussões sobre fósseis de baleias são muito mais detalhadas que essa. O pessoal pirou, simplesmente.

A qualidade das críticas que Haarsma recebeu foi variável, mas suas respostas foram uniformemente ruins. Em quase nenhum caso ela chegou a entender as objeções, e vários contra-argumentos chegam a ser insultos à inteligência do leitor. Ela é bem melhor no ataque que na defesa.

Meyer é mesmo o único versado em filosofia da ciência, o que lhe dá enorme vantagem no debate. Ham se preocupa com a questão, mas suas incursões são intuitivas, desajeitadas, amadoras. Ross e Haarsma não demonstraram até aqui nenhum entendimento ou mesmo interesse no tema.

A exposição de Meyer foi a melhor, no sentido de defender bem sua tese. Porém, ela é mesmo a mais fácil de defender, pois o DI é extremamente específico e não um sistema de compreensão abrangente sobre criação e evolução, ciência e Bíblia. Mas sem dúvida há também mérito pessoal.

Eu até concordo com Ham que o DI, mesmo correto, está ainda dentro de uma concepção de ciência secularizada e muito aquém do que se requer de um cristão. Mas não me agrada sua preocupação primária com evangelismo e guerra cultural. Fazer boa ciência é uma vocação legítima por si.

Estou longe de concordar com o conjunto da proposta de Ross, mas ele foi o que mais me ensinou ou fez pensar com observações pontuais interessantes. Talvez em parte porque sua escola é a que conheço menos. Mas não só; ele tem qualidades que são raras nesse tipo de discussão.

Tenho desacordos severos com todos os debatedores, mas só Haarsma deu um passo além e conquistou minha consistente antipatia argumentativa. Nenhum outro me fez me sentir diante de um político que insulta minha inteligência na maior parte do tempo.

A única incursão de Meyer pela teologia foi pobre, mas secundária, o que é sua força e sua fraqueza. Ele foi ao debate para discutir evidência científica e filosofia da ciência. Nesta última quase não encontrou resistência, mas encontrou na primeira, e lidou com ela muito bem.

Parte do motivo pelo qual obras como A origem são diálogos de surdos é que há muitos pressupostos não (ou muito pouco) examinados, não neste livro, mas em toda a história da reflexão sobre o tema. Precisamos urgentemente de uma filosofia cristã, não da ciência, mas da natureza.

Outro motivo para o diálogo de surdos está no que os sociólogos do conhecimento chamam de diferentes estruturas de plausibilidade: pessoas diferentes avaliam argumentos e evidências de modos diferentes. O esforço de entrar de fato na mente do outro é enorme, e poucos se dispõem.

O que estou dizendo não se aplica só aos debatedores. É fácil acontecer que diferentes leitores atribuam honestamente a vitória a diferentes debatedores. Na minha avaliação, não houve nocautes, e a contagem de pontos carrega consigo inevitavelmente alguma subjetividade do juiz.

A origem se pretende uma atualização de Criação e evolução: três pontos de vista, organizado por J. P. Moreland e John Mark Reynolds (São Paulo: Vida, 2006). E é mesmo, sobretudo na esfera científica. A organização editorial melhorou. Mas não foi um substituto à altura na qualidade intelectual e pessoal.

Terminei de ler A origem ontem. Não mudou minhas posições, nem trouxe grandes surpresas. Seria pedir demais pra quem estuda o assunto há mais de 20 anos. Mas ganhei algo em termos de acuidade, e boas ideias para as próximas pesquisas e textos. Obrigado a quem leu meus palpites.

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André Venâncio
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Written by André Venâncio

“Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança.”

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