ABC² e evolução: impressões pessoais
1. Considerações preliminares
A esta altura, provavelmente a maior parte dos evangélicos brasileiros que se interessam pela relação entre fé cristã e ciência já está informada de que a Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC²) foi alvo de críticas, tendo publicado uma extensa nota, intitulada “O falso e o verdadeiro nos ataques recentes à ABC²”, destinada a se defender de certas acusações, prestar esclarecimentos e contra-atacar. No centro da querela está a postura da instituição quanto ao pensamento evolucionário e o que isso implica quanto à identidade, ortodoxia bíblica e razão de ser da associação.
Em sua nota, a ABC² não identificou seus críticos pelo nome, mas tudo leva a crer que a preocupação primordial foi com uma série de vídeos intitulados “O evoteísmo e a ABC²: um alerta à igreja cristã brasileira”, publicados no canal de Marcos Eberlin no YouTube (veja aqui: partes um, dois, três, quatro e cinco), nos quais o próprio fez duras críticas e acusações à instituição. É provável que tenha havido também a intenção de se contrapor ao artigo “A crença na evolução e no cristianismo, ou o chamado ‘evoteísmo’”, de autoria de Solano Portela, publicado recentemente na página da bem conhecida Coalizão pelo Evangelho.
O escopo do presente texto é, creio eu, relevante, mas modesto, de modo que julgo necessário algum esclarecimento. Não tenho intenção de discutir exaustivamente o conteúdo dos textos e vídeos, e muito menos de dissertar de modo amplo sobre os temas tratados. Não analisarei o artigo de Portela nem os vídeos de Eberlin, embora algo de meu parecer sobre eles possa ficar claro ao longo da discussão. Interagirei de modo um pouco mais direto com a nota da ABC², mas mesmo nela nem tudo virá ao caso. Por exemplo, não tenho nada a dizer acerca de suas explicações sobre o financiamento recebido, e não pretendo, por enquanto, analisar a visão sobre a relação entre ciência e fé ali delineada. Vou me concentrar no ponto central da controvérsia: a postura da ABC² quanto ao tema da evolução.
Minha perspectiva é eminentemente pessoal, seja na forma, no conteúdo ou na motivação. Não tenho vínculos institucionais de nenhum tipo que me impulsionem a escrever este texto. Como cristão e físico, o tema da visão cristã sobre ciência e natureza me interessa muito. Como presbítero, o impacto disso sobre a igreja também acende meu senso de cuidado pastoral. O tema da evolução e sua relação com a fé foi a primeira grande questão intelectual da minha vida, tendo se iniciado ainda em minha adolescência. E o mais importante: apesar das limitações da minha perspectiva, que vou deixar claras já no próximo parágrafo, julgo ter algo esclarecedor a dizer sobre o tema em pauta; isto é, coisas relevantes que, até o momento, nenhum dos lados enfatizou como poderia. Espero contribuir tanto em um sentido mais puramente informativo quanto no emprego de categorias de análise que considero úteis para o posicionamento de cristãos de algum modo interessados pelo tema da querela que se desenrolou diante de nós.
Meu conhecimento das atividades realizadas pela ABC² é limitado. Para início de conversa, não sou associado. E não o sou por motivo de consciência, já que não me sinto muito à vontade com sua declaração de propósitos. É desnecessário explicar isso aqui. Basta assinalar que acompanho a situação de fora, e com interesse, mas não com muito afinco. Sou um homem ocupado e não tenho tempo livre para acompanhar o andamento de tudo o que me interessa. Por outro lado, apesar de não ser sócio, não me considero inimigo da instituição, e não descarto a ideia de trabalhar em conjunto de modo pontual quando isso não me obriga a assumir compromissos indevidos. Considerando tudo isso, meu contato com a ABC² se deu ou se dá de várias formas: 1. Pelos livros publicados pela associação em parceria com editoras (li quase todos); 2. Pelo contato ocasional com materiais publicados na internet; 3. Pela participação, como palestrante, em eventos promovidos pela ABC² (recebi convites em três ocasiões, para eventos locais de diferentes partes do país); 4. Por contatos com amigos e conhecidos que são sócios e com quem já conversei mais ou menos longamente. São essas as minhas fontes, somadas ao próprio texto da nota da ABC², que também é deveras pertinente e revelador.
2. A ABC² promove o evoteísmo? Três nãos
A primeira coisa que julgo dever observar é que a ABC² é um grupo bastante heterogêneo, de modo que qualquer generalização, para o bem ou para o mal, terá grande chance de ser injusta ou, pelo menos, imprecisa. Falo não só de diferenças de faixa etária, formação e posição no mundo científico, acadêmico ou eclesiástico, nem só de diferenças regionais ou de função dentro da própria associação, mas também de posicionamentos sobre temas teológicos, científicos ou de cosmovisão, incluindo-se aí, naturalmente, posicionamentos no debate sobre as origens. Além disso, até onde pude ver, a ABC² é uma instituição muito descentralizada, com elevado grau de autonomia conferida aos núcleos regionais, cujas características e posições podem, portanto, variar muito de um lugar para outro, conforme as inclinações e a índole das pessoas envolvidas.
Também considero relevante relatar que dois dos três convites que recebi para proferir palestras em eventos da ABC² partiram de pessoas que conhecem meus posicionamentos, que são, dentre outras coisas, fortemente antievolucionários. Em ambas as ocasiões, inclusive, eu teci tanto elogios quanto críticas a livros da própria ABC², embora não fosse esse meu propósito principal. E fui muito bem recebido, não apenas no sentido do tratamento cordial e civilizado, mas também no de ter obtido um feedback positivo quanto às ideias que havia defendido (as quais não estavam exatamente concentradas no debate sobre as origens, mas não eram de todo alheias à questão). E digo isso me referindo não apenas a sócios comuns, mas também aos que pareciam ter alguma autoridade.
Diante dessa experiência, e do que ouvi em conversas com irmãos envolvidos nas atividades da instituição de maneira mais intensa e direta que eu mesmo, considero justo dizer que prevalece um espírito de diversidade de opiniões, de respeito real a essa diversidade e de liberdade na discussão das ideias. E não tenho motivo para crer que isso valha menos para os debates e posicionamentos sobre as origens que para qualquer outro assunto que a ABC² discuta.
Uma das principais acusações de que a ABC² julgou necessário se defender é a de promover o “evoteísmo”. Direi algo sobre o termo adiante; por enquanto, deixemos a questão terminológica de lado. Afinal, a ABC² promove o evoteísmo? Considero simplista demais responder “sim” ou “não” a essa pergunta, porque “promover o evoteísmo” pode significar várias coisas bem diferentes entre si, e o fato de nenhum dos lados ter até agora refletido adequadamente sobre isso é parte do problema para cuja solução estou tentando contribuir. Mas creio que é legítimo, com base no que já apresentei, dar razão parcial às queixas da ABC² e concordar que há pelo menos três sentidos em que a associação não pode ser culpada de promover o evoteísmo: 1. Não adota de maneira oficial um posicionamento sobre a questão; 2. Não exige de seus sócios um compromisso com o evoteísmo; 3. Não procura calar ou marginalizar seus sócios que porventura não sejam adeptos do evoteísmo. Nesses aspectos, creio que o protesto da instituição contra as críticas recebidas é justo.
3. A ABC² promove o evoteísmo? Um sim
Contudo, há outros dois sentidos nos quais me parece adequado fornecer uma resposta afirmativa à mesma pergunta. Começando pelo ponto mais simples, passo a examinar brevemente os livros publicados pela ABC² em português.
Vamos aos fatos. Salvo engano, até o momento a associação esteve envolvida na publicação de quinze livros no Brasil, sendo doze deles na série “Ciência e fé cristã”, em parceria com a Editora Ultimato, e, mais recentemente, três (até agora) na coleção “Fé, ciência e cultura”, em parceria com a Editora Thomas Nelson. Comprei todos eles, mas há quatro que ainda não li. São eles: A penúltima curiosidade: como a ciência navega nas questões últimas da existência, de Roger Wagner e Andrew Briggs; Capitalismo e progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental, de Bob Goudzwaard; A origem: quatro visões cristãs sobre criação, evolução e design inteligente, de Ken Ham, Hugh Ross, Deborah B. Haarsma e Stephen C. Meyer; e Ciência e religião: fundamentos para o diálogo, de Alister McGrath.
Quanto aos dois primeiros, nada posso dizer sobre se e como lidam com o assunto das origens. Quanto ao terceiro, é precisamente um debate entre representantes das posições mais conhecidas, o que permite afirmar seu caráter de contribuição isenta ou neutra. Quanto ao último, embora naturalmente eu não possa dizer quase nada, ao menos a posição de McGrath é bem conhecida, inclusive pelo fato de ser esse já o quarto livro do mesmo autor publicado com apoio da ABC². Os outros três são: A ciência de Deus: uma introdução à teologia científica, O ajuste fino do universo: em busca de Deus na ciência e na teologia e Deus e Darwin: teologia natural e pensamento evolutivo. Em todos eles, o autor deixa claro seu posicionamento em favor do acolhimento da evolução no pensamento cristão. Não que ele defenda o ponto; apenas o pressupõe como algo um tanto óbvio. No último livro citado, McGrath chega a dizer, referindo-se à teologia natural cristã: “Avaliar sua capacidade de fornecer mapas teológicos no panorama evolutivo é potencialmente um indicativo importante de sua utilidade” (p. 15). Para ele, portanto, a teologia natural deve ser julgada por sua adequação ao pensamento evolutivo, e não o contrário. Temos até aqui, pois, uma obra neutra e quatro favoráveis à conciliação entre fé cristã e evolução no acervo da ABC².
Outros dois livros se dedicam mais incisivamente à defesa positiva da abordagem evolucionária. O primeiro deles é O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, de John Walton. Com foco teológico e exegético, esse livro busca estabelecer a legitimidade de um entendimento dos primeiros capítulos de Gênesis compatível com o pensamento evolutivo. Uma argumentação mais científica, embora sem deixar de lado a discussão teológica, foi feita por Denis R. Alexander em Criação ou evolução: precisamos escolher?, que é um longo e amplo esforço para convencer o leitor de que a conciliação entre a ciência evolucionária e a fé cristã é preferível às alternativas (criacionismos, design inteligente) sob todos os aspectos. Considero sua argumentação ruim, mas isso foge ao propósito do presente texto. Quanto ao livro de Walton, os interessados podem consultar minha resenha publicada na revista Fides Reformata, a qual foi depois reproduzida pela revista Teologia Brasileira.
Um caso à parte é a recente publicação de Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião, que eu, na verdade, não li na edição da Thomas Nelson, e sim na edição original, em inglês, em 2013. Trata-se de uma obra colaborativa organizada por Ronald L. Numbers, eminente historiador da ciência e agnóstico. Possui 25 capítulos, sendo cada um de um autor, dos quais apenas oito se declaram cristãos. O tom geral do livro apresenta uma visão positiva da relação entre ciência e fé cristã (ou religião em geral), mas sempre tomando o cuidado de fazer isso em termos bastante aceitáveis à mentalidade secularista. Em relação ao assunto em pauta, oito dos 25 capítulos tocam de algum modo no tema da evolução, nenhum dos quais com o propósito de questioná-la de qualquer modo que seja, e ao menos dois deles têm o propósito principal de desacreditar críticas a ela.
Outras duas publicações se alinham de modo explícito ao pensamento evolutivo, mas por vias não dissertativas. É o caso de Mentes, cérebros, almas e deuses: uma conversa sobre fé, psicologia e neurociência, de Malcolm Jeeves, que, assim como McGrath, declara apoio à evolução e constrói a partir dela onde necessário, sem aparentemente lhe ocorrer que ela precise de alguma espécie de defesa. É um pouco diferente o espírito do outro livro, Verdadeiros cientistas, fé verdadeira, de R. J. Berry (org.), com a colaboração de vinte autores, entre os quais os já citados McGrath e Alexander, além de Francis Collins, Simon Conway Morris e outros cristãos famosos por sua defesa da compatibilidade entre fé cristã e evolução. É um livro de testemunhos pessoais, e não me lembro se todos os colaboradores tocam no assunto da evolução, mas muitos o fazem, e sempre em termos favoráveis. É uma obra um tanto semelhante no espírito a uma publicação mais antiga, O teste da fé: os cientistas também creem, de Ruth Bancewicz (org.), mas o foco na questão da evolução é bem mais intenso. Nitidamente, um dos propósitos centrais do livro é convencer o leitor de que não há problemas em ser cristão e evolucionista. Mas essa mensagem é enviada pelo acúmulo de exemplos, e não por nenhuma espécie de argumentação.
Há no acervo da ABC² livros que não apoiam a evolução? Sim. Sobraram três. Mas dois deles o fazem simplesmente tratando de outros temas e não tocando nesse assunto ou transmitindo mensagem alguma sobre ele. É o caso de Os territórios da ciência e da religião, de Peter Harrison, e de Filosofia da tecnologia, de Marteen J. Verkerk, Jan Hoogland, Jan van der Stoep e Marc J. de Vries, que, ao menos na prática, consideram o tema irrelevante para os assuntos de que tratam, e cuja postura pode, portanto, ser considerada neutra ou indiferente, ao menos nessas obras. O único livro que se refere à evolução em termos negativos é Fé, esperança e tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica, de Egbert Schuurman, embora o faça de passagem em um único capítulo, já que, como o título permite antever, o tema principal da obra passa um tanto longe desse debate.
Dado o tempo decorrido desde minha leitura dessas obras, talvez haja algum deslize nas descrições que fiz, mas não creio que possam ser graves. Todas essas leituras me foram úteis em alguma medida, e eu gostaria de poder discorrer mais sobre elas. Mas devo me ater ao propósito imediato e, pensando nele, creio que meu ponto já deve ter ficado claro. Mesmo em uma avaliação mais superficial, puramente quantitativa, há um evidente viés: no conjunto de treze livros sobre os quais posso dizer algo, um se posiciona contra a evolução, três são neutros ou indiferentes e nove são favoráveis a ela. Se considerarmos a natureza das obras publicadas, o contraste fica ainda maior. Por exemplo, enquanto dois livros inteiros são dedicados a convencer o leitor da legitimidade da abordagem evolucionária, e vários outros fazem dessa abordagem uma de suas preocupações principais, o único livro que se opõe a ela o faz de maneira rápida e localizada em meio a reflexões com outro foco. Seria legítimo suspeitar que esse livro entrou para o catálogo, não por causa de sua oposição ao pensamento evolucionário, mas sim apesar dela, devido ao seu valor reconhecido em discussões que têm muito pouco a ver com essa.
Voltando, pois, à nossa pergunta central, há um sentido em que a ABC² de fato promove o evoteísmo: sua intenção declarada de promover um debate isonômico entre todas as posições admitidas como legítimas para um cristão teve, até o momento, pouquíssimo efeito sobre seu empenho editorial, que tem sido esmagadoramente unilateral em favor do ponto de vista evolucionário.
Devo acrescentar três observações sobre esse ponto.
1. Não penso que esse fato permita lançar descrédito sobre a instituição como um todo ou a maioria de seus associados. Como afirmei antes, a ABC² me parece bastante descentralizada e heterogênea, e é natural que parte de seus sócios não se identifique ou mesmo não aprove de todo a política editorial da associação. E, de qualquer forma, pela natureza do caso, é provável que a decisão sobre quais livros serão publicados não caiba a mais que um punhado de pessoas, embora essas decisões exerçam impacto sobre a imagem da instituição como um todo, e quem se associa à ABC² deva estar preparado para lidar com as consequências disso.
2. Precisei comentar o acervo publicado porque não houve menção a ele na nota divulgada pela ABC². E isso, por sua vez, provavelmente se deve ao fato de que Eberlin incluiu entre suas críticas bem poucas considerações descritivas sobre a bibliografia publicada pela associação. Se bem me lembro, ele mencionou ter visto palestras de eventos promovidos pela ABC², mas não afirmou ter lido os livros, exceto um. Nesse sentido, sua crítica foi mais fraca do que poderia ter sido e a ABC² pôde se esquivar de esclarecer o viés que de fato existe, atribuindo qualquer aparência em contrário à ignorância e malícia do crítico.
3. É necessário dizer com clareza que a indignação moral manifestada pela ABC² em sua nota de repúdio não combina com suas decisões editoriais. Uma ilustração pode ajudar a tornar claro o que quero dizer. Suponhamos que eu decida promover um congresso sobre política. O evento não se pronuncia oficialmente sobre sua posição; admite em seu público todos os interessados, não importando as posições assumidas; e todos são livres para defender seus pontos de vista e discutir o assunto entre si. Mas para as palestras convido treze pessoas, sendo nove de direita, três de centro e uma de esquerda (mantenhamos os termos simples para não complicar a ilustração). Nesse caso, não tenho o direito de reclamar se parecer a muitos que não estou interessado em um debate isonômico entre as posições disponíveis, ou mesmo se pensarem que meu objetivo não admitido é “endireitar” a plateia. Afinal, dar uma aparência ilusória de imparcialidade para diminuir a resistência do público a um ponto de vista impopular é a estratégia de persuasão mais velha e conhecida do mundo. Se a ABC² não possui intenção semelhante, deve ver em seu viés editorial um grande problema e se esforçar para corrigi-lo, e não se limitar a negações indignadas de todo e qualquer viés.
4. A ABC² promove o evoteísmo? Outro sim
Há um segundo sentido no qual penso ser legítimo dizer que a ABC² promove o evoteísmo. Ao contrário do primeiro, esse foi admitido pela entidade. Pode ser definido nos seguintes termos: a ABC² promove o evoteísmo enquanto posição tão compatível com a fé cristã e, portanto, tão passível de ser adotada legitimamente por um cristão quanto qualquer outra. A associação acolhe com tranquilidade os que pensam que a evolução é um erro, que não é a melhor interpretação das origens, e nesse sentido, em suas próprias palavras, a ABC² “não é dogmática, mas plural”. Porém, ela não admite que se defenda que a evolução é um erro grave do ponto de vista da cosmovisão cristã, que é incompatível com a fé exceto pelo talento humano para a incoerência, que sua adoção por um cristão é sintoma de uma capitulação indevida diante do secularismo. Sobre esse ponto a instituição é dogmática, e não plural. E, visto que essa é uma concessão que muitos cristãos evangélicos consideram excessiva ou ao menos discutível (e com razão, creio eu), estarão justificados se concluírem que, nesse sentido, ocorre de fato uma promoção do evoteísmo.
Este é, aliás, um bom momento para discutir a palavra “evoteísmo”. Ao longo deste texto, tenho-a usado em alguns momentos, lado a lado com expressões equivalentes. O termo tem se popularizado ultimamente, tendo sido usado por Portela, Eberlin e outros. De minha parte, embora enxergue a conveniência de ter uma palavra única para me referir ao conjunto de ideias que ele busca designar, não tenho apego ao termo, acho-o ruim do ponto de vista estético e ainda não decidi se e em que situações vou continuar a utilizá-lo. Não é, portanto, como um defensor que passo a comentar o repúdio da ABC² a ele. Faço-o, antes, porque os motivos apresentados pela associação dão ensejo a percepções interessantes sobre seu posicionamento. Diz a nota:
Frequentemente, escolhe-se a expressão “evoteísmo” para ser associada a alguns cristãos que aceitam a evolução biológica, omitindo a terminologia corrente (“criação evolucionária” ou “criação evolutiva”), como estratégia dissimulada e discriminatória de ocultar a realidade de que tais cristãos (como não poderia deixar de ser) creem na Criação, e reverenciam, cultuam, rendem glórias e exultam no Deus Criador e Sustentador de todas as coisas, fonte originária de todo ser e de toda existência. Para evitar essa discriminação, recomendamos o uso da expressão “criacionismo evolutivo”.
Tenho quatro observações a fazer sobre esse trecho.
1. Não estou certo de que o uso dos termos “criação evolucionária” ou “criação evolutiva” seja difundido o bastante para merecer a designação de “terminologia corrente”. Sem dúvida é corrente entre os sócios da ABC², e não duvido de que o seja em outros círculos, mas em minhas leituras pessoais não encontrei muita evidência de um uso tão esmagadoramente comum, nem vi tal evidência sendo fornecida pelas pessoas que costumam insistir que essa é “a” terminologia correta. Até que alguém prove o contrário, portanto, reservo-me o direito de suspeitar que essa referência a uma suposta “terminologia corrente” é uma estratégia retórica sustentada para deslegitimar de modo indevido a preferência legítima por terminologias alternativas.
2. Este parágrafo é uma extensão parentética do anterior. Tenho visto com frequência nas redes sociais, inclusive por parte de sócios da ABC², o mau hábito de usar diferenças terminológicas como pretexto para desqualificar a competência intelectual dos oponentes. Por exemplo, por usar “evoteísmo”, usar “evolucionismo” ou não usar “criacionismo evolucionário”. Considero essa uma saída fácil demais, com nenhum ou muito pouco mérito intelectual e cuja consequência tende a ser a perda da qualidade do debate. Afinal, o valor de um argumento não se mede primariamente pelas palavras escolhidas, e sim pelo sentido das sentenças que elas ajudam a construir. A linguagem de Deus é um livro muito ruim por sua qualidade argumentativa (uma vez eu expliquei o motivo disso em uma resenha despretensiosa no Facebook, e tempos depois o texto foi parar no Coalizão pelo evangelho), mas creio que os que gostam de se intitular “criacionistas evolucionários” poderiam aprender com a disposição ali demonstrada por Francis Collins de não se incomodar por ser chamado de “evolucionista teísta” (expressão da qual “evoteísmo” é uma espécie de abreviação) nem fazer disso um cavalo de batalha que acaba obscurecendo aspectos mais importantes do debate.
3. Embora em sua nota a ABC² não desqualifique ninguém intelectualmente por usar o termo “evoteísmo”, existe uma clara intenção de desqualificação moral, já que o uso dessa palavra é considerado uma “estratégia dissimulada e discriminatória de ocultar a realidade”. Que realidade? A “de que tais cristãos (como não poderia deixar de ser) creem na Criação, e reverenciam, cultuam, rendem glórias e exultam no Deus Criador e Sustentador de todas as coisas, fonte originária de todo ser e de toda existência”. Trata-se de uma formulação um tanto detalhada, que poderia dar ensejo a uma extensa discussão. Mas vou me ater ao ponto principal: a nota está dizendo que quem usa o termo “evoteísmo” está adotando uma “estratégia dissimulada e discriminatória de ocultar a realidade” de que não há nada de errado em um cristão que crê na evolução. Ora, mas isso é exatamente o que está em debate. Os que discordam da ABC² nesse ponto têm todo o direito de usar uma terminologia que se ajuste bem às opiniões deles. E isso, longe de ser dissimulação, é, pelo contrário, um esforço de integridade. Uma condenação moral desse esforço, chamando-o de “estratégia dissimulada e discriminatória”, equivale a nada menos que recusar ao antagonista o direito de discordar de fato. Pior ainda, equivale a fazer isso de maneira desonesta, porque oculta sob a falsa aparência de uma discussão sobre terminologia.
4. Caso não tenha ficado de todo claro, devo chamar a atenção para o motivo principal de eu ter incluído aqui essas ponderações sobre a elevada importância dada pela nota da ABC² à terminologia. Tal atitude reforça minha afirmação sobre a forte indisposição da entidade para enxergar qualquer legitimidade na visão bem difundida no meio evangélico brasileiro de que há algo profundamente errado em um irmão que aceita a evolução. Se nem uma simples escolha de palavras que desfavorecem seu ponto de vista pode ser tolerada sem uma condenação cheia de acusações morais (creio que é melhor dizer “moralistas”), é justo dizer que não parece haver espaço para nenhum tipo de questionamento da legitimidade da conciliação entre fé cristã e pensamento evolutivo.
Pode ser útil um esclarecimento adicional sobre o que não tenho a intenção de criticar na postura da associação. Ela afirma que “a presença do tema ‘evolução’ em nossos seminários e publicações deve-se ao fato de que este é o paradigma dominante nas ciências biológicas (assim como mecânica quântica ou teoria da relatividade o são em seus respectivos domínios na física)”. Não vejo problema nisso. Por esse mesmo motivo, as entidades defensoras das diversas variantes criacionistas e do design inteligente também falam de evolução o tempo todo, a tal ponto que não posso deixar de concordar com a crítica de que criacionistas geralmente são monotemáticos em sua apreciação do tema amplo, complexo e multidisciplinar da relação entre fé cristã e ciência. O problema não está em tratar de evolução, mas no espírito com que o tema é tratado; até hoje não vi ninguém afirmando o contrário.
Um retorno à ilustração comparativa com a política pode ser útil para esclarecer o ponto. É provável que haja cristãos verdadeiros no Brasil e no mundo subscrevendo toda espécie de posição política: posições kuyperianas, tomistas, conservadoras, liberais clássicas, libertárias, anarquistas, socialistas, fascistas etc. Não creio que seja ilegítimo criar uma instituição em que haja espaço de diálogo respeitoso e acolhimento para toda essa diversidade de posições. Mas uma coisa é fazer isso, e outra bem diferente é afirmar ou sugerir que todas elas são igualmente compatíveis com a fé cristã e legítimas para um cristão. Fazer essa segunda coisa sob a desculpa de estar fazendo a primeira seria uma falácia colossal. Sustento que o problema da ABC², conquanto transposto para outro domínio, é exatamente esse.
5. Considerações finais
Espero ter contribuído para esclarecer qual é e qual não é o problema da ABC² em sua relação com o delicado assunto da evolução. À guisa de consideração final, convém fazer um complemento destinado a reduzir a probabilidade de que minha própria opinião mais ampla sobre a entidade seja mal interpretada. Se me ative aqui ao tema da evolução, é porque foi ele o foco tanto do ataque quanto da defesa. Mas creio que é importante expandir esse foco a fim de fazer justiça à associação, tanto em seus aspectos positivos quanto nos negativos.
Já faz muito tempo que me incomoda o olhar estreito da preocupação evangélica quando o assunto é a relação entre fé cristã e ciência. A relevância do cristianismo para todas as disciplinas científicas, a consideração da ciência como parte da cultura, os aspectos filosóficos, históricos e sociológicos subjacentes, os pontos fortes e fracos da ciência enquanto método e enquanto instituição e várias outras questões que requerem um olhar mais amplo foram negligenciados por muito mais tempo do que deveriam (há pouco tempo tentei incentivar os cristãos em geral e os teólogos em particular ao interesse por filosofia da ciência em meu artigo “Por que os cristãos precisam ler Karl Popper”, publicado pela revista Teologia brasileira). Penso que a mais importante e, na verdade, valiosíssima contribuição da ABC² tem sido justamente mostrar à comunidade cristã brasileira a importância dessa ampliação do foco, e isso deve ser motivo de alegria e gratidão para todos.
Por outro lado, não concordo com quem pensa que o maior problema da ABC² é sua atitude em relação à evolução. Creio que seu problema é anterior a esse e tão multidisciplinar quanto sua maior qualidade. Quando cristãos ponderam sobre a aceitação de uma perspectiva evolucionária, fala-se muito nas possíveis consequências: se os que aderirem a ela vão se tornar ateus, liberais ou hereges. A questão é legítima, mas não vai à raiz do problema. Vejo a adesão à evolução sobretudo como consequência ou sintoma. A pergunta mais adequada é: se um cristão acha a ideia evolucionária plausível e satisfatória (ou não acha, mas não vê grandes problemas em achar), quanto secularismo já entrou em sua cosmovisão? Essa é a questão central. Minha impressão sobre a ABC² é que, a despeito de seus muitos pontos positivos, existe uma tendência geral a uma satisfação com a ciência moderna secularizada maior do que um cristão deveria sentir. Em outras palavras, julgo discernir um compromisso indevido ou síntese com o secularismo em muitas instâncias. Não tenho, é claro, intenção ou condição de justificar aqui essa tese. Mas, sem ao menos enunciá-la, poderia permanecer a impressão de que o convívio relativamente pacífico com o pensamento evolucionário é “o” problema, e não apenas um sintoma ou parte mais visível do problema real.
Minha avaliação atual, portanto, é que o que a ABC² tem de bom é muito bom, e o que tem de ruim é muito ruim. Não me disponho a apoiar aprovações ou condenações integrais de sua existência. Inclino-me, antes, a pensar que no Último Dia haverá muita palha queimando, mas ela mesma será salva, como que através do fogo.