Ciência e fé: a gravidade do problema, e vice-versa

André Venâncio
20 min readFeb 6, 2024

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“José Newton já dizia: se subiu, tem que descer” (Raul Seixas)

Motivação

Sou um cristão protestante teologicamente conservador, e falo aqui do que vejo nesse meio. O nível intelectual de nossas reflexões sobre ciência e fé é, em geral, extremamente baixo. Parte disso é porque é difícil dizer algo que presta sobre a relação entre duas coisas se nem conseguimos entendê-las separadamente. E uma de minhas conclusões duramente alcançadas ao longo dessas décadas é que quase ninguém no meu meio entende a natureza da ciência. Cientistas praticantes não costumam ser exceção, e um dos sintomas do tamanho da nossa ignorância é a naturalidade com que em geral presumimos o contrário.

Alguns dias atrás vi um tuíte que me deu uma ideia de como explicar alguns aspecto importantes dessa dificuldade, e é por isso que estou escrevendo este texto. Um jovem irmão chamado Matheus disse o seguinte: “A teoria da evolução de Darwin tem a mesma ‘influência negativa’ para a fé cristã do que a teoria da gravidade de Newton”.

O tema da evolução é sensível no meu meio. Várias pessoas se apresentaram para endossar ou contestar a opinião do Matheus sobre evolução, e isso é absolutamente típico. Devo dizer, aliás, que eu mesmo discordo dele nesse ponto. Sou um criacionista no sentido clássico do termo, ainda que vários fatores me distanciem das várias tradições que levam esse nome.

Mas, bem ou mal, um monte de gente acha importante discutir essas coisas. Porém, a comparação tinha dois termos: a teoria de Darwin e a teoria de Newton. Ninguém deu a menor importância ao que foi dito ali sobre a segunda. Comentando esse tuíte, um tal João Guilherme disse que “negar a evolução é tipo defender a terra plana, negar a gravidade etc.”, e Matheus respondeu: “E ninguém nega a gravidade”.

Essas ideias sobre a gravidade me parecem flagrantemente erradas, e tão repletas de consequências ruins para uma compreensão adequada da relação entre fé e ciência quanto qualquer coisa que possa ser dita sobre a teoria da evolução. Na verdade, acho escandaloso que ninguém enxergue e discuta isso. Foi para quebrar esse silêncio perturbador que decidi escrever o presente texto. Não resisto à tentação de dizer que a gravidade do problema da gravidade é severamente subestimada entre nós.

Preâmbulo

Acho importante esclarecer que o uso retórico (no sentido não pejorativo da palavra) do conceito de gravidade em contextos assim é algo muito corriqueiro nas controvérsias sobre criação e evolução (assim como em várias outras), e não uma invenção do Matheus. Por que a gravidade é tão frequentemente escolhida para isso? A ideia transmitida, se explicitada, é esta: o fato de que as coisas caem é óbvio, inescapável, prontamente acessível a qualquer um. Não há objeção possível, seja ela científica, teológica, filosófica ou de qualquer outra espécie que não possa ser prontamente identificada como uma tremenda idiotice. Em especial, nenhuma exegese bíblica que negasse esse fato básico poderia ser levada a sério. De qualquer forma, é algo que se resolve no âmbito da ciência, e não fazendo exegese bíblica, um fenômeno a ser investigado pelo método científico acerca do qual nem faz sentido elaborar um juízo de valor teológico. Então, o que está sendo dito é que as mesmas coisas que valem para a gravidade valem para a evolução. Não poucos dirão que vale para tudo aquilo que está dentro do escopo da ciência.

É possível, claro, que alguém use retoricamente a gravidade sem pensar explicitamente em tudo isso. Não obstante, essas ideias estão todas ali. E, mais importante, elas extrapolam qualquer interesse específico pela física da atração dos corpos, pois expressam o cerne do que o senso comum diz sobre a natureza da ciência. E esse senso comum é a imagem dominante na nossa cultura em geral: cientistas e leigos, cristãos ou não.

Entretanto, vejo quatro grandes problemas nesse conjunto de ideias, e aqui procurarei expô-los a partir de uma exploração um pouco mais profunda do exemplo da gravidade.

Afinal, a que nos referimos quando falamos em “gravidade”, “lei da gravidade”, “gravitação” e expressões afins? Acredito que será útil distinguir pelo menos três significados possíveis:

Conceito 1: O fato geral de que as coisas caem.

Conceito 2: A ideia (qualitativa e um tanto vaga) de que todos os corpos ou partículas do universo se atraem mutuamente e que isso tem relação com suas massas.

Conceito 3: A chamada Lei da Gravitação Universal, proposta por Isaac Newton, que vai além do Conceito 2, afirmando de maneira específica que a atração entre quaisquer duas partículas é descrita pela famosa equação F = G * m1 * m2 / r². (Isto aqui não é uma aula de física, então, se quiser saber mais, vá ao Google. E, se você não entende esta equação, não se preocupe: isso não vai fazer falta na presente discussão.)

São três conceitos bem diferentes entre si. A importância dessas distinções, espero eu, ficará clara ao longo da discussão. Agora já posso introduzir minhas quatro críticas ao que chamei de “senso comum” da nossa cultura sobre a natureza da ciência.

1. Um problema filosófico

É importante perguntar, a cada momento, de qual conceito de gravidade estamos falando, pois os três têm características muito distintas, e isso é fortemente relevante para o que estamos examinando. Dizendo de outro modo: há uma ambiguidade que precisa ser dissipada, e se dissermos “gravidade” sem pensar em nada disso estaremos propensos a cometer erros graves.

Por exemplo, quando dizemos que a gravidade é um fato evidente e óbvio, devemos perceber que isso só é verdade para o Conceito 1. Porém, quando falamos da gravidade como algo cientificamente investigado e estabelecido, podemos estar falando do Conceito 2 ou do 3, mas não do 1. Em outras palavras, não podemos dizer tudo o que diz o senso comum sobre ciência sem mudar de conceito no meio do caminho.

Visto que isso pode parecer chocante ou contraintuitivo, vou tentar desenvolver melhor o argumento.

O fato de que as coisas caem é amplamente conhecido desde que há gente no mundo. Não foi Newton quem descobriu isso. Nem nenhum cientista. Não é necessário ter nenhuma ciência para saber disso. Milhões de pessoas viveram e morreram sem ter a menor ideia sobre ciência alguma, e muitas continuam assim hoje em dia, mas ninguém tem dúvidas sérias de que as coisas caem. O Conceito 1 não é, pois, um conceito científico ou técnico. É um fato da experiência que muitos filósofos chamam de “ingênua”, e que Herman Dooyeweerd e alguns outros chamam de “pré-teórica”, ou seja, anterior a qualquer atitude “científica”, no sentido mais amplo possível desta palavra. É algo que as pessoas sabem, não porque refletem científica ou filosoficamente, não porque fazem experimentos ou deduções, e sim porque estão no mundo e percebem o que acontece nele.

Segue-se daí que é errado usar esse tipo de evidência (Conceito 1: é óbvio que as coisas caem) como um argumento para qualquer coisa que envolva a gravidade enquanto conceito científico (os Conceitos 2 e 3). É tão errado quanto defender seriamente que antes de Newton publicar seus Principia ninguém tinha notado que as coisas caíam. Seria ridículo. Seria uma confusão monumental. E seria uma grande ironia alguém defender as descobertas da ciência ou o respeito à ciência em tais bases. Afinal, dizer que Newton descobriu algo que todo mundo sempre soube não é um bom modo de honrar seu gênio.

Nesse sentido, a retórica se torna retórica na acepção ruim da palavra. Para que uma descoberta ou teoria científica pareça tão obviamente verdadeira, foi necessário atribuir à ciência algo que não lhe pertence. O Conceito 2 não é obviamente verdadeiro. O Conceito 3 o é menos ainda. Newton precisou defender suas teses com muitos dados observacionais e experimentais e uma matemática avançada, aliás, desenvolvida especialmente para a ocasião. Não é à toa que a humanidade viveu milênios sem conceber nada parecido com a Lei da Gravitação Universal. Em vez de defender a ciência, nós a depreciamos quando tratamos suas trajetórias longas e árduas como coisa fácil.

O problema, então, é este: na medida em que a gravidade é algo óbvio e inegável, não é científica; na medida em que se torna científica, não é óbvia nem inegável. Não podemos manter as duas coisas ao mesmo tempo. O problema surge da nossa enorme dificuldade de fazer justiça a toda a dimensão pré-teórica ou ingênua de nossa apreensão da realidade. Em particular, simplesmente não precisamos de ciência para saber muitas das coisas que sabemos. E isso tem muitas e profundas consequências, não só na reflexão cristã, e não só ao falarmos de ciência.

2. Um problema científico

Acabo de dizer que a gravidade, “na medida em que se torna científica, não é óbvia nem inegável”. Isso pode ter causado estranheza em alguns leitores, e convém explicar. Não ignoro que algum tipo de contestação da gravidade é parte do repertório terraplanista, e devo me apressar em evitar essa suspeita. Aqui vou falar de física mainstream mesmo. Mas, prometo, sem tecnicalidades.

Indo direto ao ponto: o Conceito 3, a Lei da Gravitação Universal de Newton, não é verdadeiro, e a comunidade dos físicos sabe disso há mais de cem anos. Isso deve soar esquisito. Afinal, não aprendemos isso na escola? Vou explicar.

O conjunto da mecânica newtoniana é um dos grandes feitos intelectuais da história da humanidade, e sua teoria da gravitação ocupa nela um lugar importante. Pode parecer banal dizer que Newton “explicou a queda dos corpos” (frase comum, mas não totalmente verdadeira, como vou explicar no último tópico). Mas a teoria de Newton faz bem mais que isso. Aplicando sua Lei da Gravitação Universal no contexto definido por suas outras três leis, Newton demonstrou que não só a queda dos corpos era descrita adequadamente, mas também outros fenômenos sem ligação evidente com isso, como as marés e os movimentos dos planetas.

Muito poderia ser dito sobre o quanto a abrangência e elegância desse sistema mudou o mundo, tornando-se um modelo para a física posterior, para outras ciências da natureza, e até para boa parte das ciências humanas; enfim, um ideal de conhecimento para toda a civilização moderna. Mas aqui vou manter o foco e dizer apenas que, durante cerca de duzentos anos, as leis de Newton foram vistas como Leis da Natureza no mais profundo e autêntico sentido do termo, como descrições verdadeiras do algoritmo do universo, como conquistas a serem complementadas, sem dúvida, mas jamais negadas. Muitos filósofos, entre os quais Kant e Hegel, tomaram-nas como pressupostos básicos de seus sistemas. Muita apologética, boa ou ruim, contra o cristianismo ou a favor, foi feita nas mesmas bases. Ainda vemos os ecos dessa glória no modo como Newton é tratado em nosso sistema educacional.

As linhas gerais do declínio dessa ideia ao longo do século XIX e início do XX foram bem resumidas por Albert Einstein e Leopold Infeld em seu clássico A evolução da física. De especial relevância para nós é que, após muitos sucessos que o próprio Newton jamais poderia ter previsto, sua teoria enfim se chocou (com danos irreparáveis) contra o movimento precessional de Mercúrio. Em algum momento da década de 1880 constatou-se que esse planeta se recusava a obedecer à Lei da Gravitação Universal de Newton (nosso Conceito 3). Uma explicação alternativa amplamente aceita só surgiu três décadas depois, com a teoria da relatividade geral de Einstein.

O quadro possui considerável complexidade, de que tento apenas dar uma ideia aqui, mas por enquanto pode ser dito que a Lei da Gravitação de Newton, assim como a mecânica newtoniana em geral, se encontra hoje refutada no sentido mais básico e simples desses termos, falseada no sentido dado à palavra por Karl Popper. Ela continua sendo útil, verdadeira num sentido mais relativo, para uma grande variedade de coisas, e fornece números precisos o suficiente para muitas aplicações. Mas é apenas um caso-limite de outras teorias mais abrangentes e que deixa de funcionar em certas condições, como escala nanométrica, velocidades próximas à da luz ou campos gravitacionais muito intensos (que é o caso de Mercúrio, próximo demais do sol). Independentemente de sua utilidade, o fato é claro: não podemos dizer hoje que todas as partículas do Universo se atraem segundo a equação proposta por Newton. Conhecemos casos em que isso não ocorre. A Lei da Gravitação não é mais Universal.

Os físicos tendem a ser pragmáticos (demais, talvez) e não pensar muito nessas coisas, mas a precisão quantitativa das teorias não é tudo, e em algum nível todo mundo sabe disso. Nenhum físico acredita hoje que a mecânica newtoniana descreve bem o mundo de modo universal, ou seja, que a realidade última do mundo físico é como Newton disse que era. As revoluções conceituais trazidas pelo eletromagnetismo, pela mecânica quântica e pelas duas teorias da relatividade tornam impossível que seja de outra maneira. Na verdade, as leis de Newton nem mesmo fazem muito sentido num universo que não segue alguns de seus pressupostos filosófico-metafísicos, como o conceito de espaço absoluto ou a invariância do tempo.

Newton foi um gênio e sua contribuição às ciências físicas e matemáticas foi quase inigualável. Mas, justamente por isso, acho que a cultura ocidental ainda não superou o trauma de ter de abandoná-lo, e ainda vemos sintomas da fase de negação. O problema pedagógico posto por esse fenômeno é enorme. Mas não sou professor. Quero apenas contestar o senso comum sobre ciência de outra maneira: ele frequentemente depende de assimilações sobre fatos técnicos da ciência que são simplesmente erradas. Se alguém diz que uma teoria científica sobre a gravidade é incontestável, claramente verdadeira, então essa teoria não pode ser o Conceito 3. É aceitável ler isso em Kant, mas não em alguém que escreve em 2024. Sem dúvida é contraproducente apresentar como incontestável uma teoria que foi refutada há mais de cem anos.

Falta-nos cultura científica. E a vastidão do empreendimento científico torna muito difícil evitar esse problema. Aliás, isso nem é um problema só para os leigos. Nunca vi um único cientista de qualquer área, antigo ou recente, cristão ou ateu, criacionista ou não, iniciante ou experiente, brilhante ou medíocre, que não falasse besteiras científicas. Em geral subestimamos essa dificuldade. E erros desse tipo fazem com que os mais bem informados questionem se realmente amamos o que estamos defendendo.

3. Alguns problemas de filosofia da ciência

Na discussão sobre “ciência e fé” tendemos a pensar primariamente num binário, a ser tratado por cientistas e teólogos. A própria formulação do problema leva a isso: ciência é o assunto do cientista; fé é o assunto do teólogo. Como poderia ser diferente? Mas estou cada vez mais convencido de que muitas outras vozes são igualmente importantes. A qualidade de nossa reflexão é sofrível em parte por estar praticamente monopolizada por essas duas classes. Alguns anos atrás eu até escrevi um artigo tentando incentivar um envolvimento mais profundo com a disciplina conhecida como filosofia da ciência. Agora precisamos nos voltar um pouco para ela.

Neste ponto se torna importante a distinção que fiz entre os Conceitos 2 e 3. Afirmei na seção anterior que o Conceito 3 foi refutado. Essa é uma diferença importante entre eles. O Conceito 2 não foi refutado: acredito que no contexto da relatividade geral ainda pode ser dito que todas as massas do universo “se atraem” em algum sentido. Mas creio que é justo dizer, empregando as categorias popperianas, que o Conceito 2 só não foi refutado porque é vago demais para isso. É apenas uma ideia qualitativa, que não gera predições muito definidas que possam ser testadas experimentalmente. Nesse aspecto, ela é mais como a física de Aristóteles. Por si só não é uma hipótese científica de acordo com o critério de demarcação de Popper. Não obstante, é um motivo importante, um elemento presente em uma teoria, ou em várias, e nesse sentido é parte legítima da ciência.

Ao mesmo tempo, o Conceito 2 é nitidamente distinto do Conceito 1 (que é a simples convicção pré-teórica de que as coisas caem). Prova disso é que Aristóteles tinha uma teoria que lidava com o Conceito 1 sem fazer uso de nada parecido com o Conceito 2. Sua teoria não é considerada científica por muita gente hoje em dia, e certamente não o é nos termos da ciência moderna, mas é científica no sentido de brotar de uma atitude teórica (de novo nos termos de Dooyeweerd). A física aristotélica (como, em geral, qualquer filosofia) não está no âmbito pré-teórico, e é grosseira a confusão que alguns fazem entre a ciência aristotélica e o senso comum ou a intuição infantil.

Mas esqueçamos Aristóteles e voltemos aos Conceitos 1 e 2. Uma diferença importante entre eles é que o Conceito 2 tem pretensões de universalidade. Ele afirma que todas as partículas do universo se atraem, até aquelas em regiões que nunca vimos. Afirma também que há uma atração gravitacional entre os móveis da minha casa, da qual não tenho a menor evidência. Nesse sentido, o Conceito 2 transcende em muito não só nossa experiência real, mas também qualquer experiência humana possível. Se alguém afirmar que dois corpos quaisquer (digamos, o monte Everest e a galáxia de Andrômeda) não se atraem, não há meios de provar que esse alguém está errado. Em muitos casos não poderemos verificar que a atração existe; e os casos em que podemos serão muito numerosos, e muitas vidas dedicadas a isso não seriam suficientes. Enunciados científicos universais sempre esbarram no problema da indução de Hume: jamais podemos provar que são verdadeiros.

O Conceito 3 também precisa ser trazido para essa discussão. Na seção anterior eu afirmei que ele foi refutado ainda no século XIX. Porém, o conceito de refutação é em si mesmo um problema filosófico enorme. Há quem nem acredite em sua relevância ou utilidade. Eu não chego a tanto, mas concordo que é insuficiente (simplista, ingênuo) se contentar com nossas ideias intuitivas sobre “acordo ou desacordo com os fatos”, que é o que aprendemos na escola, naquela aula sobre método científico. Não considero que Popper tem a última palavra nessa questão, apesar de minha admiração por ele e do modo como me referi a ele parágrafos atrás. No mínimo deve ser notado que é bastante comum na história da ciência o retorno de ideias que pouco tempo antes todos juravam que estavam mortas e enterradas. Alguns movimentos históricos se assemelham mais a pêndulos que a trajetórias lineares.

Não é tão difícil entender o motivo: teorias científicas são entidades complexas. Existem ideias centrais, existem ideias periféricas, existe o que os filósofos da ciência chamam de “hipóteses auxiliares”, e existe também o que Michael Polanyi chamou de “dimensão tácita”, pressupostos que às vezes sequer chegaram a vir à consciência. Quando um experimento ou observação contradiz uma teoria, significa que há algo errado, mas não é fácil saber o que é. Mil possibilidades podem ser aventadas, inclusive algumas que dirão que o problema não está na teoria. Na história da própria mecânica newtoniana isso aconteceu mais de uma vez: parecia que ela havia sido refutada, mas depois alguém descobriu uma explicação alternativa para a discrepância. Provavelmente o caso mais notável disso foi o desvio inexplicado na órbita de Urano que acabou resultando na descoberta de Netuno. Mais recentemente, já na vigência da relatividade geral, a cosmologia se deparou com um problema semelhante, em que a falta de massa no universo levou alguns a postularem a existência de uma tal matéria escura. Essa é a explicação correta, ou é uma tentativa artificial de salvar uma teoria que deveria ser dada como falseada? Não sei dizer; não estou por dentro dos desdobramentos recentes dessas discussões. É apenas um exemplo de como não é fácil bater o martelo e dizer se o que vemos é ou não uma refutação.

E, mesmo que todos concordem que uma teoria foi refutada, o que decorre disso? Como já vimos no próprio caso da mecânica newtoniana, uma teoria estritamente falsa não se torna inútil ou sem valor só por isso. E muitos elementos dela podem continuar vivendo ou retornar futuramente sob novas formas. Alguns, como o físico David Bohm (um dos raros cientistas que são também bons pensadores), chegam a sugerir que devemos entender teorias mais como metáforas; que não há problema em manter paralelamente, por longo tempo, várias teorias conflitantes; e que a pressa em escolher entre elas resulta em pobreza. Até Popper, um tanto contra seus princípios mais básicos, disse algo nessa direção quando reconheceu que uma teoria refutada cedo demais poderia morrer antes de dar frutos.

A filosofia da ciência se ocupa de discussões desse tipo, e muitas outras. Aqui não tenho a pretensão de aprofundar nada disso. Parece-me que há na própria comunidade científica uma ignorância e um desinteresse abissais por filosofia da ciência, o que resulta em grandes prejuízos. Acredito que é um dos caminhos a trilhar por cristãos genuinamente interessados na ciência moderna e sua relação com a fé. E é só por isso que, no contexto desta breve dissertação sobre a gravidade, acho importante pincelar de leve algumas dessas questões. Vejo o fato de quase ninguém no nosso meio se interessar por elas como uma falha grave.

4. Um problema histórico, tangenciando a questão religiosa

Em ciência, como em qualquer outra coisa, o conhecimento histórico tem um efeito curativo contra todos os simplismos. E o que diz o senso comum sobre história da ciência é um grande simplismo. Thomas Kuhn o comparou aos panfletos turísticos que recebemos ao visitar outro país. Tudo bonitinho, organizado, agradável, atendendo nossas expectativas. Tudo bom demais pra ser verdade.

No caso, a expectativa central é que questões científicas sejam resolvidas com base tão somente no mérito técnico da respectiva disciplina, sem quaisquer considerações exteriores, alheias ao mundo da ciência. Em especial, nenhuma interferência de considerações religiosas ou teológicas. Porém, muitas vezes não é assim, e o caso da gravidade é uma ótima ilustração disso.

Mencionei acima que não é totalmente correto dizer que “Newton explicou a queda dos corpos”. Sim, ele a explicou em certo sentido, ao descrevê-la em meio a um conjunto bem mais amplo de fenômenos com base nos princípios de sua dinâmica e na Lei da Gravitação Universal. Porém, ele se recusou firmemente a propor qualquer explicação para a atração em si. Sua comunidade era dominada pelo mecanicismo, e não era problemática a ideia de um corpo exercer uma força sobre um corpo vizinho, por contato. Contudo, como seria possível que um corpo exercesse uma força sobre outro situado lá longe? Para muitos a ideia era absurda, inadmissível. E, se pensarmos bem, não é mesmo algo fácil de conceber. Foi nesse contexto que Newton proferiu sua famosa frase: “Não finjo hipóteses”.

O sistema de Newton acabou prevalecendo com base em muitos méritos, mas esse vácuo tinha importância bem maior do que parece à primeira vista. As teorias físicas da época, como a de Descartes ou a de Leibniz, eram fortemente ligadas aos respectivos sistemas metafísicos e teológicos, com implicações profundas para a apologética. Uma acusação que todos faziam contra todos os demais era a de estarem corroendo as bases da fé cristã e dando munição à heresia. E é possível que todos tivessem razão. Diante disso, a parcimônia de Newton pode parecer um simples arroubo de uma sensatez mais moderna, uma recusa de ir além do mérito da questão estritamente física, uma noção mais clara da distinção entre as esferas, uma declaração de neutralidade filosófica e teológica, talvez até um positivismo avant la lettre.

Mas nenhuma dessas inferências é correta. Newton não queria confusões dessa ordem e não se envolveu publicamente em debates desse tipo, mas nem por isso era alheio a tais questões. Seus amigos e apoiadores se envolveram nesses debates por ele, com seu consentimento e incentivo. Sua física era um reflexo de sua metafísica e de sua teologia, exatamente como as de seus críticos, e um concorrente a mais no mercado de ideias da época. Seu conceito científico de espaço absoluto, por exemplo, derivava diretamente de sua estranha teologia do espaço físico como sensorium Dei e, portanto, não uma simples criatura. Alexandre Koyré tratou do assunto de modo fascinante em seu belíssimo Do mundo fechado ao universo infinito.

A decisão de Newton de não tentar explicar a atração entre os corpos era na verdade parte da estratégia nesse debate com seus contemporâneos: para muita gente em seus círculos, ação à distância era algo anticientífico, irracional, absurdo, e fazia lembrar as teorias mágicas oriundas de certa tradição renascentista que aquelas pessoas respeitáveis viam com o máximo desprezo. Newton queria evitar tais associações e suspeitas.

O mais interessante, porém, é que tais preconceitos tinham fundamento. Newton era um cristão heterodoxo, muito interessado por teologia, e em especial um grande obcecado por profecias e escatologia. Além disso, a ideia de ação à distância era natural para ele porque ele era também um grande estudioso de alquimia e outros itens da tradição ocultista. Quem achava que a ideia de corpos celestes interferindo na terra era coisa de astrólogos não estava, afinal, tão longe da verdade. O que Newton fez, meio às escondidas, foi uma grande síntese, uma das muitas que promoveram o avanço da física ao longo dos séculos.

Tais fatos (e muitos outros) geram constrangimento e embaraço para quem se habituou não só com a ideia geral de uma separação estanque entre ciência e religião (e, na verdade, entre ciência e qualquer outra coisa), mas ainda mais para quem adotou a visão do senso comum sobre a história e as origens da ciência moderna, que foi uma construção posterior empreendida pelos herdeiros do iluminismo. Não é à toa que Voltaire precisou fazer um malabarismo considerável para apresentar Newton ao público francês como uma espécie de racionalista deísta. Não é à toa que o grande economista John Maynard Keynes, que se meteu na conversa por ter adquirido em leilão os manuscritos do grande físico, ficou impressionado com o que leu e concluiu que Newton não era o primeiro cientista, e sim o último mago.

A disciplina da história da ciência está muito mais bem informada, a ponto de um historiador ilustre como John Henry considerar com grande naturalidade a “magia renascentista” como uma das tradições que deram origem à ciência moderna, ao lado da “filosofia natural” e da matemática. E de outro historiador ilustre como Pierre Thuillier enxergar com igual naturalidade que visões sobre religião continuam exercendo grande influência sobre as teorizações da ciência, inclusive nas obras de Darwin e Einstein.

Mas esses fatos geram constrangimento também em muitos crentes que, por não terem a obrigação de ser bajuladores acríticos da tradição iluminista, teriam plenas condições de adquirir uma visão mais rica e justa não só sobre história da ciência, mas sobre a própria natureza desse grande empreendimento. Em especial, estamos em condição de recusar um relato simplista que considera a atividade científica como um ambiente fechado à cultura em geral e à religião em particular, que era o sonho abstrato dos positivistas, mas não corresponde ao que a ciência realmente é.

Considerações finais

Por mais importante que seja tudo o que foi dito, talvez algum leitor ainda tenha dificuldade de entender as implicações, justamente porque, afinal, a física da gravidade não costuma ser vista como tópico profundamente relevante para a fé cristã. Não era assim no século XVII, mas hoje é. Tais coisas variam enormemente ao longo das gerações. Cada época tem suas cegueiras características.

Para tentar contornar esse obstáculo pedagógico, vou retornar brevemente à questão da evolução, pela única razão de ser um tópico mais amplamente visto como relevante. Serei bem mais cauteloso e breve, por ser um assunto que foge à minha área de formação. Acho tacanho o pensamento de que ter uma opinião correta sobre evolução basta para resolver nossos graves problemas de incompreensão sobre ciência. Até onde posso ver, muitos criacionistas padecem das mesmas ilusões sobre a natureza da ciência. Phillip Johnson, por quem tenho grande respeito, foi um que falou bobagens um tanto pueris sobre a gravidade. É por isso que neste texto tomei um caminho menos explorado para tentar dar um panorama mais amplo. Não é, pois, para criticar a evolução que passo a dizer o que vou dizer, embora um pouquinho do que penso a respeito deva ficar claro à guisa de efeito colateral.

Apresentei três diferentes conceitos de gravidade: um baseado na experiência pré-teórica; uma ideia científica incipiente e vaga; e uma teoria bem definida, proposta por um indivíduo histórico. Podemos fazer proveitosamente uma distinção semelhante para a evolução? Penso que sim. Por exemplo, Matheus se referiu especificamente à teoria da evolução “de Darwin”, uma teoria bastante específica, que claramente ocupa o lugar do nosso Conceito 3, inclusive por já ter sido refutada e substituída por várias versões posteriores. Nenhum biólogo atual endossa o conjunto da teoria original de Darwin.

Mas haveria um Conceito 2 sobre evolução, uma ideia mais vaga e mais central, que permanece firme e quase consensual ao longo de todas as transformações históricas desses mais de duzentos anos? Creio que sim. Talvez possamos pensar em algo como “todos os seres vivos possuem um único ancestral comum (ou pelo menos um número muito reduzido em comparação com a quantidade e diversidade de hoje)” ou “as espécies mudam ao longo das gerações, e depois de muito tempo podem se transformar em algo profundamente diferente do que eram”. Pode ser que não sejam as melhores formulações possíveis, ou que haja outras tão boas quanto essas. O importante é que essa ideia central está em muitas teorias evolutivas ao longo da história, inclusive aquelas anteriores a Darwin (não devemos nunca esquecer que o autor da ideia básica da evolução não foi ele), e até algumas ideias mais heterodoxas que muitos consideram pseudocientíficas, como a de Rupert Sheldrake baseada em sua teoria da ressonância mórfica.

Haveria, enfim, um Conceito 1, pré-teórico, imediatamente acessível a todos quando contemplam a natureza, à parte de quaisquer observações ou argumentos científicos? Não vejo nenhum. Aqui a simetria entre evolução e gravidade parece se quebrar. A evolução é um processo demorado, e não a testemunhamos cotidianamente. Podemos pensar em algumas coisas vagamente relacionadas. Por exemplo, os filhos são semelhantes aos pais, mas não idênticos, de forma que há uma ideia pré-teórica de variabilidade. Ou então os que tiverem oportunidade de encontrar fósseis esquisitos poderão, quem sabe, compreender que a fauna e a flora já foram diferentes, que houve espécies que não existem mais. Mas isso seria, no máximo, uma ideia pré-teórica de extinção. Ambas são ideias de mudança ao longo do tempo, sem dúvida, mas ficam muitíssimo aquém das afirmações específicas de uma visão evolucionária da vida, e são perfeitamente compatíveis com muitas visões que não podem ser apropriadamente descritas como evolutivas.

Por isso, em princípio não vejo uma ideia pré-teórica de evolução, ao menos não uma que possa brotar espontaneamente da observação dos fatos ao nosso redor. A plausibilidade da teoria da evolução, na medida em que existe, está ausente da experiência pré-teórica do mundo e depende da investigação científica (ampla e nada óbvia) tanto ou mais que qualquer teoria da gravidade.

Encerro aqui meu texto, tendo plena consciência de que deixei um milhão de pontas soltas. Não tem problema se o leitor achar que eu disse alguns absurdos. O esforço de me antecipar a todas as objeções provavelmente seria insuficiente e deixaria o texto muito pesado. Já bastam o peso que nos mantém no chão, o peso das teorias que buscam lidar com isso e o peso do grave problema que procurei delinear aqui da maneira mais leve que pude. No fim das contas é a leveza, e não o peso, que nos permite ascender às alturas.

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André Venâncio
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Written by André Venâncio

“Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança.”

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