O segundo doce

André Venâncio
8 min readJun 17, 2024

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Ele era assim: lindão, e com o olhar mais expressivo do mundo. Foto tirada em janeiro pela minha prima Júlia.

No momento em que inicio este texto faz pouco mais de duas horas que o Chantilly morreu. Estou agora ressuscitando um costume antigo. Eu escrevi textos quando perdemos os outros gatos doces que tivemos, Chocolate e Mel. Depois perdemos também o Floquinho e o Gorgonzola, mas eles não ganharam textos. Não que não merecessem, mas eu acabei processando o luto de outras maneiras.

Mais do que nunca, me sinto incapaz de fazer justiça à riqueza dessa vida felina em um texto. Sinto que a tarefa seria desafiadora até para Homero ou Dante. Na impossibilidade, porém, de recorrer a eles, agravada pelo fato de que não tiveram a sorte de conviver com esse precioso gatinho, sou obrigado a evitar a delegação da tarefa e fazer eu mesmo o melhor que puder.

Somos experientes em ter e perder gatos, mas há sempre novos elementos. Os principais são que nenhum dos outros viveu tanto quanto o Chantilly, que se foi após respeitáveis dezessete anos; e todos morreram em clínicas veterinárias, enquanto ele morreu em casa. E que diferença essas coisas fazem!

A biografia de um gato pode ser tão rica e interessante quanto a de qualquer ser humano e, justamente por isso, resisto à tentação de oferecer aqui um relato adequadamente objetivo. Alguns fatos básicos bastam. Não são o que tenho a dizer de mais importante numa hora como esta.

Chantilly nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em algum momento de 2007. Aparentemente nasceu na rua. Foi encontrado ainda filhote, bebendo água de uma poça suja numa rua movimentada, com um ferimento na boca, provavelmente causado pelo pé de alguém. Foi levado para um abrigo, onde, para surpresa de todos, um banho revelou que ele era branco, e não bege. Foi anunciado para adoção numa comunidade do então badalado Orkut, onde uma foto sua cativou de modo irreversível o coração de uma linda carioca chamada Norma, que morava só e procurava um companheiro para o Mel, até então seu único gato, que sofria de intensa solidão quando ela precisava sair pra trabalhar. Ela pagou o transporte dele (de avião) para o Rio, e foi assim que Chantilly começou a se tornar o gato vira-latas mais caro do mundo.

O Mel não gostou muito da novidade num primeiro momento. Fez um bom drama, como só os gatos sabem fazer. Passou um tempo enciumado. Mas o Chantilly soube conquistá-lo direitinho, e se tornaram grandes amigos, mais do que qualquer par de gatos que tenhamos tido desde então, e assim foi até a morte do Mel, em 2019.

Ele foi feliz no novo lar, mas tinha muito medo de todas as outras pessoas do universo. No dia em que entrei no recinto pela primeira vez, para pedir a Norma em namoro, fui bem recebido pelo Mel, mas do Chantilly tudo o que vi foram uns olhinhos brilhando preocupados embaixo da poltrona, vigiando cada movimento meu e dizendo: “Ei, sr. desconhecido, não sei o que você quer com a mamãe, mas vá embora. Sua presença está estragando meu dia.”

Ao longo dos meses seguintes eu consegui conquistar a confiança dele, como ele havia conquistado a do Mel. Desde então, fomos felizes juntos. Por minha causa ele se tornou provavelmente o gato mais viajado do país, tendo residido em sete apartamentos, em cinco estados da federação. Na primeira mudança ele berrava desesperadamente. Na última, já veterano, ele dormiu a viagem toda e deixou o drama para o novato Zozó.

Era um gato de personalidade forte, muito determinado e com muito mais energia do que seria de se esperar de sua idade, e isso em todas as idades. Quando novinho, destruiu as cortinas de linho da Norma escalando-as repetidamente até o teto e se pendurando lá em cima para olhar o mundo de cabeça pra baixo antes de descer de ré. Apesar de sempre ter sido pequeno e magro, nunca teve grande dificuldade de impor respeito a gatos maiores e mais jovens que ele. Quando velho, recebeu elogios de todos os veterinários por sua saúde invejável. Poucos meses atrás, quando parou de comer por algum tempo, arrancou durante a noite, sabe Deus como, a sonda esofágica que haviam instalado. Uma semana atrás, já bem enfraquecido, encontrou forças para pular na janela e pedir tapinhas pela última vez (só quem já o viu ganhando tapinhas vai conseguir visualizar a cena).

Ao mesmo tempo, era um gato imensamente sensível. Talvez em parte por ser surdo, tornou-se muito bom em ler emoções, expressões faciais, sentir o clima. Era também muito expressivo e sabia se comunicar com clareza, o que foi se aperfeiçoando ainda mais com a sabedoria dos anos. Também foi se tornando mais e mais corajoso, perdendo o medo das visitas, revelando seus encantos e conquistando muitos corações de parentes e amigos que vieram nos visitar. Tenho orgulho de ter sido pioneiro nessa empreitada.

Era obstinado, mas também obediente. Detestava desagradar. Precisava de muito menos e mais leves repreensões que qualquer outro gato. Grande apreciador de farelos de pão e, assim, o maior prejudicado pela intolerância a glúten que a Norma veio a desenvolver. Grande comedor de camarões também; quase a única coisa capaz de transformá-lo num ladrão. As histórias engraçadas que protagonizou poderiam encher um livro.

O que mais se destaca na minha memória agora é a intensidade do seu olhar, da expressão facial. Olhos de amor, de medo, de angústia, de alegria, de perplexidade.

A confiança com que ele vinha pedir um colo; mais exigência do que pedido. Nenhum outro gato no mundo amou tanto um colo.

A bundinha que se empinava de satisfação cada vez que nos via.

A pata traseira delicadamente pousada no meu pé enquanto o rabo abraçava minha canela, para pedir tapinhas enquanto eu tentava trabalhar ou fazer qualquer outra coisa na minha escrivaninha.

A capacidade de captar no ar momentos de amor entre nós e correr para participar. Mal podíamos nos abraçar sem sentir um rabo de gato enlaçando nossas pernas.

E quando a Norma engravidou ele ficava inquieto, sem conseguir relaxar no colo dela, olhando em volta o tempo todo atônito, dizendo com os olhos: “Sei que tem alguém escondido em algum lugar por aqui! Como pode?”

No ano passado descobrimos seu hipertireodismo. Três meses atrás isso se agravou, afetando também os rins, o coração, a pressão. A idade começou a pesar seriamente. Ele parou de comer. Fazia pouco tempo que tínhamos perdido o Zozó de maneira um tanto repentina, e não quisemos arriscar. Assim, num domingo às duas da manhã fui eu atravessar Copacabana com uma caixa de transporte para levar o gato na clínica 24h mais próxima. Perigoso, sim, mas apostei que nenhum assaltante ia querer levar um gato vira-latas velho e doente. Só pra nós ele tinha valor.

Foram semanas de internação, mil exames, mil remédios, mil conversas com veterinários. Vivemos em função disso por algumas semanas. Horário pra tudo, medir quanto ele está comendo, se está perdendo peso, se está quentinho, analisar os vômitos, observar o cocô, dar muito carinho. Aprendemos a manusear seringas, aplicar soro, alimentar por sonda (até ele decidir que não seria mais necessário). Também gastamos uma pequena fortuna, claro, e ela nos custou uma viagem muito desejada e planejada. Valeu cada minuto e cada centavo. Pois pedimos a Deus que nos desse mais um tempinho com ele, e fomos atendidos. Ele melhorou, voltou a comer vorazmente. E eu ficava às vezes olhando comovido pra ele e agradecendo a Deus por ainda tê-lo por perto. Sabíamos que podia não durar muito, e por isso aproveitamos ao máximo. Até nossa vontade de sair de casa diminuiu.

Na semana passada, quando ele parou de comer novamente, entendemos que provavelmente faltava pouco. Os rins já estavam parando de funcionar. As taxas estavam altíssimas, e o tratamento da internação não funcionava mais. Fui lá e trouxe o gato pra casa. Não queríamos que ele morresse numa clínica, como os outros. E passamos os últimos dias seguindo todas as recomendações veterinárias, com mais um monte de remédios e cuidados. Mas, sobretudo, desfrutando da companhia dele, ao mesmo tempo em que víamos, de coração apertado, que ele enfraquecia bem depressa.

Observar isso de perto, sem terceirizar os cuidados, fez diferença na nossa vida. Até hoje cedo eu ainda tinha esperança de que ele pudesse se recuperar e viver mais um pouco. Mas foi ficando claro que desta vez não seria assim, e sobrou apenas a disposição de estar por perto e dar amor até o último minuto. Não fomos à igreja. Não vimos filmes. Não fizemos comida. Revezamo-nos para ir ao banheiro.

Ao longo do dia, como frequentemente acontece em Copacabana, nosso apartamento foi invadido por ótima música pessimamente executada. Fiquei feliz por ele ser surdo; merecia morrer com uma trilha sonora melhor. Mas num certo momento cantaram Trem das onze, um velho samba que eu adoro, e fui atingido em cheio pelos versos “Não posso ficar nem mais um minuto com você / Sinto muito, amor, mas não pode ser”, devidamente removidos para um novo contexto.

Não foi uma profecia tão literal: ele viveu mais algumas horas. Vimos suas forças definharem, a mobilidade diminuir, a temperatura baixar, a incontinência chegar (logo ele que sempre deu tanto valor à sua higiene), a respiração se tornar difícil e, não muito depois, uma levíssima vibração, algo como um último ronronado, percorrer seu corpo enquanto o acariciávamos.

É necessário fazer menção honrosa à Coralina, nossa primeira gatinha fêmea que chegou há dois meses, amou o velhinho desde o primeiro instante e se empenhou para conquistá-lo tanto quanto ele se empenhara para conquistar o Mel, mil anos antes. Com uma sensibilidade perfeita e um respeito imenso pelo gato idoso e suas chatices, ela foi conseguindo, pouco a pouco. Antes dessa última internação, ela conseguiu dividir um colo com ele, coisa absolutamente inimaginável. Ela percebeu que ele estava mal. Saiu de seu esconderijo só para se despedir. Ficou claramente triste, desnorteada até, quando ele se foi.

Ela foi uma de muitas bênçãos de Deus para os momentos finais dele. Não daria pra contar todas. Os inúmeros sinais da Providência em cada detalhe, a ponto de ser espantoso. Foram tempos de emoções mistas: tristeza, gratidão, consolo, louvor, perplexidade. Perplexidade? Sim, pois não era só com o nosso sofrimento que Deus se importava. Era com o dele também, e talvez ainda mais. Isso ficou muito claro. E em vários momentos eu me vi genuinamente espantado por Deus valorizar tanto a vida e a morte de um simples gato vira-latas.

Foi então que julguei ouvir um anjo rindo da minha cara. “Que burro! Dá zero pra ele!”, sentenciou solenemente o ser celestial. E algum dia, após a restauração de todas as coisas, tenho certeza de que esse mesmo querubim, normalmente tão sisudo, há de me abordar com ar zombeteiro, dizendo: “Então você achava mesmo que Deus se importaria menos que você com essa vida que se apagava?! Você achou que poderia amá-lo mais que o Autor dele?!”

E eu, encolhendo-me em santo constrangimento, terei de confessar que sim. Que aprouve ao Criador usar aquela vidinha para me instruir, encorajar e consolar até nos últimos instantes. E que esse foi apenas um item a mais numa lista infindável de coisas que aprendi desde que à minha jornada se adicionou um amor de gato. E, para não cansar os ouvidos angelicais com detalhes já fartamente sabidos, acrescentarei apenas que a companhia desse gatinho foi uma das alegrias mais preciosas que Deus me concedeu em minha breve e penosa passagem por este mundo.

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André Venâncio
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Written by André Venâncio

“Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança.”

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