Resenha de “O estigma da cor”

André Venâncio
8 min readMay 26, 2022

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Passaram-se cerca de três semanas entre a chegada do livro O estigma da cor: como o racismo fere os dois grandes mandamentos de Cristo, de Jacira Monteiro (São Paulo: Quitanda, 2021), e o início de minha leitura. Dado o tamanho da minha fila de livros para ler, esse é um tempo excepcionalmente curto, mesmo levando em conta meu hábito de dar certa prioridade aos livros que ganhamos de presente dos respectivos autores, como neste caso. Isso diz algo sobre o tamanho de meu interesse nessa leitura, que se deve não só à simpatia virtual que eu e minha esposa Norma nutrimos por sua autora, mas também ao mérito do assunto discutido e ao tamanho da minha ignorância a respeito. Aliás, é justamente por causa desse último fator que eu mesmo me surpreendi com a ideia de fazer uma resenha do livro, e hesitei um pouco antes de colocá-la em prática. Sei que tenho certa fama de sabe-tudo e que alguns tomarão o que digo como sintoma de falsa modéstia, mas é necessário correr o risco e dizer que, na minha filosofia de trabalho, só vale a pena escrever resenhas quando tenho alguma contribuição relevante a oferecer sobre o assunto do livro. E, embora eu provavelmente entenda mais que Jacira sobre uma porção de assuntos, o racismo está longe de ser um deles, qualquer que seja o ângulo de abordagem. Se me resta a esperança de oferecer alguma contribuição, tem de ser uma contribuição de outra espécie. A autoridade que me compete é mais semelhante à que possuo para avaliar a competência do meu dentista: não por eu entender de odontologia, nem por saber cuidar muito bem dos meus dentes (se soubesse, precisaria menos do dentista), e sim apenas por serem meus os dentes cariados em questão.

Não é meu propósito resumir aqui a tese do livro ou discutir seu argumento. O livro é pequeno e de leitura fluida e agradável. Não é o tipo de obra que precisa da ajuda de um resenhista para transmitir seu recado. Jacira escreve com muita clareza, e isso porque tem a qualidade um tanto rara de pensar com muita clareza, o que facilita muito a vida do leitor, mesmo no ato de discordar. O que desejo é incentivar sua leitura; e, se isso não for pretender demais, quero incentivar um modo específico de leitura.

Primeiro preciso falar um pouco sobre minhas expectativas prévias. Quem me conhece sabe que sou um leitor voraz, e não é raro que minhas leituras tangenciem o tema do racismo. Posso dizer que sei coisas sobre o tema que não muita gente sabe. Apesar disso, nunca fiz desse assunto um foco específico de estudo, e minhas leituras não acidentais sobre ele são relativamente escassas. Assim, eu tinha a expectativa de aprender. E aprendi. Jacira claramente leu muito sobre o tema e traz dados e conceitos interessantes em relativa abundância, dado o caráter introdutório e academicamente despretensioso do livro, além de fornecer boas referências bibliográficas para aprofundamento em direções diversas. Mas não está aí o que aprendi de mais importante, como ficará claro daqui a pouco.

Devo falar um pouco também sobre o que julgo serem os pontos mais fracos do livro. Faço isso com certa hesitação, não só porque sou muito bom em criticar, e isso nunca deve ser feito com satisfação, mas também porque um livro como esse se presta facilmente a leituras de péssima qualidade (por culpa do leitor, não da autora), e eu não gostaria de dar munição a abordagens impacientes ou maliciosas. Mas venci essa hesitação por achar que é um dever de honestidade e porque não vejo muitas chances de crescimento para uma escritora que só receba elogios e críticas bestas.

Sempre há, é claro, diferenças de opinião. Usando de um atalho linguístico bem batido, eu diria que o conjunto da obra tende um pouco mais para a esquerda do que eu considero saudável. Quando digo “um pouco”, não é um atenuante diplomático; quero dizer “um pouco” mesmo. E não digo isso me referindo só aos momentos em que é diretamente abordada a questão política, que de modo algum ocupa o centro do livro; julgo ver alguma tendência nesse sentido no espírito geral da obra. Por exemplo, o “egoísmo” ou “individualismo” leva uma culpa maior que o necessário, enquanto o mal do coletivismo é pouco explorado. Também tenho um número razoável de desacordos pontuais quanto a certas avaliações de pessoas, fatos históricos e passagens bíblicas, ainda que tenham pouco peso no conjunto.

Nada do que citei no parágrafo anterior tem muita importância, não só porque não há nenhum grande crime em discordar de mim, mas também porque as limitações mais relevantes que vejo passam longe desses pontos. Embora isso possa soar um pouco vago, sinto que a autora se beneficiaria muito de uma maior cultura geral, uma ampliação dos horizontes de interesse que poderia trazer maior perspicácia e profundidade às suas análises. Penso também que as partes mais conceituais do livro, seja ao tratar de temas políticos, culturais ou bíblicos, poderiam trazer uma argumentação mais rigorosa sem prejuízo da clareza ou do caráter introdutório da abordagem. Mesmo quando eu concordava com a conclusão, como quase sempre ocorreu, com frequência me parecia que o argumento podia ser melhorado pela remoção de um excesso de retórica, a atenção a uma alternativa ignorada, o cuidado com uma simplificação excessiva ou o fortalecimento de uma premissa implícita discutível. Não há um caminho fácil para aprender a lidar com tais sutilezas, e talvez pareça sem propósito mencionar isso, porque é um problema inerente à juventude. Nelson Rodrigues deu aos jovens um conselho sapientíssimo (“Envelheçam!”), mas aparentemente inútil, porque ninguém pode envelhecer em um ato único e deliberado. Mas há benefício em consentir no envelhecimento e buscar conscientemente aproveitar as vantagens disso, o que me leva a crer que pode haver proveito nessas observações.

Não convém, no entanto, exagerar o valor de nada disso, e é por isso mesmo que vou encerrar aqui minhas críticas. Não desejo de modo algum dar a impressão de que tais limitações prejudicam seriamente o valor do livro. Na verdade, mesmo o efeito sobre seu poder de persuasão é pequeno, a menos que o leitor seja um racionalista consumado, com toda a carga de burrice que isso acarreta. Para quem dispõe de uma conexão mais saudável entre as duas metades do cérebro é muito mais fácil achar o livro poderosamente convincente no conjunto e na essência, apesar dos possivelmente numerosos desacordos pontuais. Uma das melhores qualidades de Jacira enquanto escritora (e, presumo, também enquanto pessoa) é sua integridade, a recusa de tratar de cada aspecto do problema de maneira impessoal. Sua atitude convida o leitor a fazer o mesmo, mergulhando na questão discutida em vez de molhar apenas a ponta dos pés ou do cérebro. Se a proposta não for compreendida e aceita, a leitura será ruim, e milhões de pretextos intelectuais ou ideológicos “justificarão” a condenação e o desprezo da obra; a quem resistir a essa tentação, por outro lado, o livro revelará sua riqueza.

Em que consiste essa riqueza? Não posso ter a pretensão de descrevê-la de modo adequado aqui, mas posso dizer que é um livro extremamente sensato, como que por instinto. A autora não está tratando de um tópico meramente interessante, e sim de uma das questões centrais de sua vida, algo que já motivou muito sofrimento, muito choro, muita oração, muita conversa, muita reflexão, muita cura, muita graça. O livro não é uma autobiografia (nenhum jovem tem o direito de escrever uma), mas os vislumbres de sua experiência de vida estão presentes em dose suficiente para o leitor sensível, e são deveras valiosos e tocantes. Por isso a qualidade da reflexão é impressionantemente madura para tão pouca idade. Por isso Jacira não tem tempo para abstrações ou, de modo geral, para bobagens. Por isso Deus a colocou na honrosa posição de publicar um livro e ganhar certa notoriedade tão cedo na vida.

O capítulo de que mais gostei é o que trata da conjunção entre o problema do racismo e a “feminilidade bíblica” (falsa ou verdadeira). O tema da feminilidade é um tópico de primeira grandeza na vida de minha esposa, e minha própria experiência pastoral também me levou a dedicar especial atenção aos problemas das mulheres crentes, especialmente das solteiras e jovens casadas. Encontrei mais bom senso nas poucas páginas que Jacira dedicou ao tema do que em muita coisa que já li sobre o tema. Também apreciei muito seu tratamento do problema da ira e do ressentimento entre as vítimas do racismo, e de como o evangelho apresenta a cura interior que também serve de antídoto contra as falsas soluções da ação política. E seu capítulo sobre o papel histórico da igreja veio se juntar a outras linhas de evidência que têm me convencido de que precisamos de uma avaliação mais profunda, justa e honesta dos pecados dos nossos irmãos do passado, porque de alguma forma os herdamos.

Mais importante do que qualquer desses temas, no entanto, é algo que não está confinado a um capítulo: a exposição de uma dor. E da cura para essa dor, que Jesus oferece, mas é aplicada em um processo que, por sua vez, também é doloroso. Esse é um dos fatos centrais do livro, e é por isso que ele não poderá ser apreciado sem uma disposição para a empatia. Não vou entrar aqui na análise dos modos bons ou ruins pelos quais leitores negros, brancos ou quaisquer outros poderiam lidar com esse fato central. Não me julgo competente para tanto. Apenas preciso dizer que os piores perigos de uma má leitura tendem a vir daqueles mais comprometidos com uma ideologia política qualquer do que dispostos a ouvir de coração aberto o testemunho de um grupo de seres humanos que sofrem.

Não faço esse alerta do alto de um pedestal. Pelo meu histórico, provavelmente estive (e posso ainda estar) mais perto da indiferença de Caim do que gostaria de admitir. Sou branco. Nunca convivi muito com negros; ao menos não o suficiente para que fosse natural ou frequente conversar com eles sobre racismo. Quase nunca soube o que pensavam ou sentiam a respeito. Fui ensinado desde cedo que racismo era feio e era pecado. Sempre me pareceu uma obviedade. Mas é só. O assunto nunca teve importância existencial para mim. E vejo agora que essa indiferença tendeu um pouco para o desdém na minha juventude, sobretudo no auge da minha empolgação com o conservadorismo político. Para que eu me tornasse um homem capaz de chorar ao ler que uma criança negra certa vez teve de ouvir a sugestão de que teria sido melhor se ela fosse branca, Deus precisava fazer muitas coisas no meu coração ao longo dos anos. Mas ele as fez, e estou grato por isso.

E agora? Acho que o racismo continuará não sendo uma questão central na minha vida, e acho que a luta contra ele continuará não ocupando a maior parte dos meus esforços. (Mas mais de uma vez já me enganei sobre esse tipo de coisa, e por isso digo com muita convicção que eu ACHO. Afinal, quem pode adivinhar o que Deus está aprontando?) Não me sinto necessariamente culpado por isso. A vida é curta, nossa energia também, e ninguém pode ser culpado por não lutar em todas as frentes importantes. A seara é grande, e os trabalhadores são poucos. Porém, assim como ninguém pode se eximir de evangelizar o vizinho por não ser missionário ou ficar satisfeito em desconhecer a Bíblia por não ser pastor, é certo que posso fazer mais do que tenho feito em relação a esse tema, e senti o desafio para ficar de olhos abertos para as oportunidades que Deus pode manifestar.

Foi esse o maior benefício que julgo ter extraído da leitura desse livro. Não apenas pelas ações que posso vir a desempenhar no futuro, mas também pela disposição interior que gera essa maior prontidão, uma sensibilidade ao menos um pouco melhorada para as dores dos que as sofrem. E, mais do que isso, posso desde já me considerar abençoado pela vida dessa irmã e apreciar a beleza da sabedoria de Deus por ter feito as coisas como fez: se Jacira fosse branca, é fácil ver agora, o Reino seria um pouco mais pobre.

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André Venâncio
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Written by André Venâncio

“Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança.”

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