Sobre generalizações
Não vou negar que, uma vez mais, tive a ideia de escrever um texto com base numa encrenca virtual na qual me meti no X, também conhecido como Twitter. Mas o assunto não interessa aqui, e expô-lo desviaria o foco, como logo ficará claro. Basta dizer que fiz uma afirmação desagradável sobre certa categoria de seres humanos. Eu mesmo pertenço a essa categoria, e sinto-me no direito de fazer uma crítica interna de um dos meios a que pertenço. Mas muitos que pertencem a esse meio, sabendo ou não que também é o meu caso, ficaram furiosos, e a reação que mais li consistiu em variações de “Que generalização absurda!” É sobre isso que quero refletir aqui: o conceito de generalização.
Vou partir de um exemplo distante, em vários sentidos, porque assim fica mais fácil enxergar o que quero mostrar. Suponha que eu diga: “Os iranianos não são árabes”. Muita gente não sabe disso, e acha que não só iranianos, mas também afegãos, paquistaneses e turcos são todos árabes, para suprema ofensa de todos eles (inclusive dos árabes), um erro no mínimo tão grave e básico quanto a proverbial afirmação de que a capital do Brasil é Buenos Aires.
Ainda assim… Na verdade, deve ser dito que cerca de 2% dos iranianos de fato são árabes. E agora? É correta ou não a minha afirmação de que “Os iranianos não são árabes”? Bem, claramente isso não vale para todos os iranianos. Se o que eu quis dizer foi “De cada indivíduo iraniano é correto dizer que não se trata de um árabe”, então a afirmação é logicamente falsa. Porém, se eu quis dizer apenas “Tomando a esmo um iraniano, a probabilidade de ele ser árabe é muito baixa”, e se 2% puder ser entendido como muito baixo para os propósitos da discussão, então ela é verdadeira.
Essas duas afirmações correspondem a dois modos de generalização. Talvez pudéssemos chamá-las de “generalização forte” e “generalização fraca”. Nem sempre pensamos com tanta precisão, e é comum isso gerar consequências na comunicação e nas discussões da vida cotidiana. Às vezes tentamos expressar a ideia recorrendo a expressões como “em geral”. “Em geral, os iranianos não são árabes”. Mas ainda fica ambíguo. Conforme o caso, “geral” pode ser ou não sinônimo de “universal”.
É claro que há outros problemas. Por exemplo, aquele que Vern Poythress chama de “fronteiras borradas”. Um iraniano de mãe árabe e pai não-árabe (ou vice-versa) é árabe ou não? E se um iraniano de etnia árabe foi adotado por uma família não-árabe e criado numa cultura não-árabe, ele é árabe ou não é? Não há respostas universalmente claras para essas perguntas e, se precisarmos dizer sim ou não, terá de ser de maneira mais ou menos arbitrária, ditada pelo objetivo e pelo contexto. Da mesma forma, é difícil saber quantos iranianos não-árabes precisam existir para que a “generalização fraca” deixe de ser verdadeira. 2% é suficiente? Se não, quantos? Três? Dez? 49? Visto que a grandeza é basicamente contínua, há certa arbitrariedade nessa resposta também.
Situações assim são abundantes no mundo, e são muito facilmente usadas em batalhas retóricas intermináveis. Para a maioria de nós, aqui no Brasil, pouco importa quanta verdade há na afirmação de que os iranianos não são árabes, e é justamente por isso que escolhi esse exemplo. Mas suponha que essa questão seja de extrema importância para alguém: para os próprios 2% de iranianos árabes, para os outros 98% ou para os vizinhos iraquianos (país tradicionalmente inimigo do Irã e cuja maioria é árabe). Suponha que haja fortes interesses existenciais, identitários, políticos, econômicos ou jurídicos envolvidos nessa questão, e que seja uma questão polêmica, que divide opiniões. O que vai acontecer?
O que vai acontecer é que alguém vai defender que “os iranianos não são árabes” e vai ouvir em resposta acusações de estar fazendo uma generalização absurda. Os dois lados serão tentados a empregar todas as armadilhas da retórica barata. Um vai acusar o outro de estar dizendo que em todo o território iraniano não há um único árabe, e apresentará profusas provas do contrário. O outro responderá acusando de exagero desonesto da importância árabe no Irã, como se todos os árabes entre o Marrocos e o Iraque tivessem se mudado pra lá. E assim a discussão caminhará, sem qualquer solução. Talvez as partes nem entendam o que está acontecendo. E talvez não tenham desejo de entender, ou interesse em agir de outro modo. Mas enxergar o problema seria indispensável para os que desejassem resolvê-lo. Seria proveitoso ter clareza sobre qual tipo de generalização se tem em mente e as dificuldades envolvidas, e procurar expressar isso com mais clareza.
Quero ressaltar, no entanto, que até aqui estivemos discutindo dois tipos de generalização, mas há algo em comum entre eles: são ambos quantitativos. O que está sendo considerado é a quantidade de ocorrências de membros do conjunto “árabes” dentro do conjunto “iranianos”. Desse ponto de vista, o que chamei de “generalização forte” é apenas um caso limite da “generalização fraca”. Mas existe também algo a que posso chamar de generalização qualitativa. Por exemplo, qual é o grau de influência desses 2% de árabes sobre o país? São 2% pobres e marginalizados, ou é uma elite que determina muita coisa? Historicamente, qual é a extensão e a profundidade da influência da cultura árabe sobre o Irã? Quanto são semelhantes ou diferentes? Quanto o idioma local deve ao árabe? Até que ponto os iranianos têm consciência dessas relações e as apreciam ou repudiam? Com que intensidade e variações as atitudes em torno disso se distribuem na sociedade iraniana?
Elementos quantitativos podem ser utilizados na busca de respostas a essas perguntas, mas as questões propriamente ditas não são quantitativas, e tocam em vários pontos dos mais imponderáveis e difíceis de medir na vida humana. Então, a afirmação de que “Os iranianos não são árabes” pode não ter absolutamente nada a ver com a única interpretação que demos até aqui a essa afirmação: de quantos iranianos são etnicamente de origem árabe. Ser árabe ou não sê-lo pode ter muitas outras dimensões, que interagem entre si de maneiras nada simples. E discussões em torno disso tenderão a ser muitíssimo mais difíceis de resolver que a questão da quantidade de iranianos etnicamente árabes.
Escrevo esse texto, não por causa dos iranianos, embora o assunto me interesse muito, mas porque acredito que precisamos lidar de modo mais inteligente com o conceito de generalização. Melhor dizendo, com os conceitos de generalização. É tão fácil generalizar de maneira errada e boba quanto fazer de uma tese qualquer um espantalho ao transformá-la na generalização errada. No caso que gerou a ideia do presente texto, em que falei de milhares ou mesmo milhões de pessoas, houve gente pretendendo me refutar triunfalmente mediante a apresentação de um único contra-exemplo. E nem era plausível inferir que eu estava afirmando conhecer suficientemente todos os indivíduos da classe criticada, mas ainda assim essa enormidade me foi atribuída. Uma generalização quantitativa fraca era mais que suficiente para manter meu argumento, mas nenhum dos críticos parece ter percebido que eu tinha em mente, na verdade, uma generalização qualitativa. Mas, afinal, como as duas se relacionam?
Vou tentar ilustrar a questão com um exemplo diferente: o que Paulo quis dizer quando disse que é “exato” o “testemunho” de um “profeta” que disse que os cretenses tinham “ventres preguiçosos” (Tito 1.12–13)? No caso de uma generalização quantitativa forte, estamos recebendo aqui a revelação divina afirmando que não havia, em toda a ilha de Creta, um único indivíduo que não fosse preguiçoso. Numa generalização quantitativa fraca, ele estaria dizendo apenas que muitos cretenses eram preguiçosos, a maioria, talvez quase todos. Que ali ser trabalhador era exceção, não regra. Num cenário de generalização qualitativa, o apóstolo quis dizer que a preguiça ali era um pecado culturalmente compartilhado, muito praticado e pouco notado ou confrontado.
Qualquer que seja a interpretação preferida, note que não há necessariamente uma contradição entre a generalização qualitativa e qualquer das versões quantitativas. Pelo contrário, no caso: se existe uma alta tolerância e leniência em relação à preguiça, deve haver muitos preguiçosos. O contrário também é verdadeiro. Pode não ser sempre assim. Por exemplo, a influência árabe na cultura iraniana pode ser vasta, mesmo que haja poucos árabes ali. Mas o ponto é que, mesmo quando essa correlação existe, não devemos presumir que ela se dá de modo simples. Assim, embora pareça que havia muitos preguiçosos em Creta, não é necessário supor que todos os cretenses eram preguiçosos em nível máximo, do tipo que leva mordida de tartaruga por preguiça de correr. É razoável pensar que não só alguns cretenses não eram preguiçosos, mas também que alguns eram mais preguiçosos que outros. E talvez as opiniões sobre o problema ou a virtude da preguiça também tivessem certa variabilidade. Ou seja, podemos entender que o apóstolo estava dizendo que o problema da preguiça era “generalizado” em Creta sem que isso nos dê informação sobre o grau de participação na preguiça de qualquer cretense em particular, e sem negar que esses graus existam, em primeiro lugar. Ainda assim, aparentemente era verdade que muitos (talvez até todos) os cretenses fossem participantes de uma cultura da preguiça.
Assim, quando Paulo diz “o cretense é preguiçoso”, isso pode significar muitas coisas, desde “todo ser humano em Creta leva mordidas de tartaruga por preguiça de se mexer” até “muitos cretenses participam em grau mais ou menos elevado de uma visão e prática que tendem a minimizar o problema da preguiça”.
O mundo está cheio demais de entendimentos e argumentos ruins. Não resisto à tentação de dizer que é um problema generalizado. Meu propósito aqui é incentivar você, leitor, a resistir à tentação da preguiça quando alguém perto de você fizer algum tipo de generalização e se esforçar para entender o que de fato foi dito. Uma generalização pode ser, e muitas vezes é, uma tremenda imbecilidade, mas às vezes uma boa generalização pode ser o melhor jeito de dizer alguma coisa. É melhor a gente não generalizar nossa opinião sobre isso.