Uma árvore forte no paraíso

Não choremos, amigo, a mocidade. / Envelheçamos rindo! Envelheçamos / como as árvores fortes envelhecem (Olavo Bilac)

André Venâncio
7 min readMay 6, 2021
Essa foto eu roubei do meu irmão: capta bem a alma do meu vô e explica a origem do meu gosto por chapéus.
Eu, Norma e meus avós no nosso casamento, em 2010.
Minha última foto com ele, em 2016. Nos encontramos uma vez depois disso, mas não havia clima para fotos.

Morreu nesta madrugada meu avô materno, Alcírio Justino Pereira. Minha tia, que cuidava dele em São Pedro, interior de São Paulo, me deu a notícia logo cedo. Não foi exatamente uma surpresa. Seu estado de saúde vinha piorando nos últimos meses; já não andava e estava com a lucidez comprometida. Eu gostaria de ter ido ao sepultamento, mas não foi possível. Portanto, farei minha homenagem por aqui, com palavras.

Embora não tenha a pretensão de escrever uma biografia, não sei tanto quanto gostaria sobre sua vida. Mas sei que ele nasceu em 1932 no município de José Bonifácio, região de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Estive lá com ele há cerca de quinze anos. É uma cidade bem pequena; em 1932 certamente não passava de um minúsculo povoado de agricultores. A vida dele foi exatamente isso: membro de uma família numerosa que se dedicava ao cultivo da terra, motivo pelo qual, embora desse sinais de inteligência desde cedo, foi pouquíssimo à escola. Trabalhou na terra desde a infância, morou em vários povoados da região, foi dispensado do serviço militar contra a sua vontade e pouco depois conheceu minha vó na entrada de um circo itinerante que andava por ali. Acho importante ressaltar que eles se tornaram o melhor casal de dançarinos nos bailes da roça naquela parte do mundo.

Embora quase iletrado, meu vô era uma espécie de “livre-pensador” (muitas aspas), um homem de personalidade forte, orgulhoso e cheio de ideias próprias. Tivera contato com o catolicismo, o espiritismo e outras doutrinas, mas rejeitou todas elas. Pelo que pude inferir de seu próprio relato, sua posição religiosa na época do casamento estava perto do mais puro e consciente relativismo. Mas de repente ele se enxergou despreparado para educar os filhos que ainda teria, e percebeu, olhando em volta, que os filhos dos crentes dificilmente se tornavam bandidos, beberrões ou vagabundos. Teve, então, a brilhante ideia de começar a frequentar a igreja dos crentes, não por algum interesse em Deus, mas para descobrir o segredo da boa criação de filhos. Causou muita confusão nas aulas de escola dominical, discutindo veementemente sempre que discordava de algo que era dito (o que, pelo jeito, acontecia muito), e apegado sobretudo à crença na reencarnação, que permanecera apesar de sua rejeição do espiritismo.

Não havia um pastor naquela congregação. Na verdade, havia apenas um pastor para os muitos povoados da região, de modo que ele aparecia de vez em quando. A conversão do meu vô se deu através de outro homem, um caixeiro-viajante da capital que andava de carro pelo interior (vendendo roupas ou algo assim) e costumava pregar onde acontecesse de estar no domingo. Foi assim que meu vô um dia o ouviu pregar sobre o “ladrão da cruz”, que ganhou de Jesus o paraíso no mesmo dia, sem boas obras nem necessidade de reencarnação. Ali ele entendeu a graça e creu. Não sei o nome nem nada mais sobre aquele pregador, mas farei questão de procurá-lo na nova terra, pois foi através dele que Cristo entrou em minha família.

Chegou minha mãe, depois minha tia. Meus avós decidiram se mudar para São Paulo, buscando uma vida melhor. Mais precisamente, o sonho do meu vô era se tornar advogado. Chegando à capital, conseguiu emprego como zelador de uma igreja grande, e depois vieram outras ocupações. Vieram meus outros tios, quatro filhos homens, e muito trabalho para dar sustento à família. Meus avós se desdobravam. Conta-se que meu vô chegou a ter três empregos simultâneos, que às vezes desmaiava de fome no trem, que ele e minha vó quase não conseguiam ficar em casa, de modo que os filhos mais velhos cuidavam dos mais novos. Meu vô nunca conseguiu cursar a faculdade de direito(esse sonho seria realizado mais tarde pelo seu neto mais velho, meu irmão), mas, dado o tamanho do desafio, considero impressionante que tenha conseguido concluir o ensino médio. Ele sempre gostou de ler, sempre queria saber o que eu estava lendo e algumas vezes me surpreendeu com seus conhecimentos. Nem ele nem minha vó tiveram jamais grandes empregos, mas eram muito trabalhadores e bons administradores domésticos, de modo que aos poucos a situação da família foi melhorando.

Não sei muito sobre essa fase, mas sei também que meu vô foi presbítero e tanto ele quanto minha vó se envolveram muito na vida da igreja. Ambos são parte da história da IPB na Zona Leste de São Paulo, sobretudo da UPH e SAF, respectivamente. Também eram evangelistas e trabalharam na plantação de várias igrejas, inclusive uma que se reuniu por algum tempo na casa deles, ocasião na qual apareceu um certo visitante que mais tarde viria a ser o meu pai.

Quando eu entrei em cena, como é óbvio, muita coisa já tinha acontecido, mas muitas aconteceram depois também. É claro que meu vô sempre me pareceu velho, mas na minha infância ele ainda trabalhava e era cheio de energia. Sua voz não era ouvida com muita frequência. Era tímido e discreto. Ainda assim, sua presença era acolhedora, e sempre me senti muito amado por ele. Mesmo seu prolongado silêncio era amável e, de algum modo, bem-humorado. Nunca entendi como ele conseguia tudo isso. Muitas de minhas melhores lembranças são dele observando a gente brincar, ou mexendo nas plantas do quintal enquanto cantarolava algum hino (ele gostava muito de música e poesia), ou mesmo cochilando no sofá.

Meu vô se aposentou e, quando o último filho se casou, ele e minha vó realizaram o sonho de voltar para o interior. Na verdade, eles se mudaram uma porção de vezes desde então. Meu vô sempre se mantinha ocupado reformando e melhorando a casa ou carpindo e plantando coisas no quintal. Com o tempo as forças foram declinando, mas o ânimo, não. Cinco anos atrás perguntei a ele o que andava fazendo. Ele podia ter dito que não fazia muita coisa porque a velhice o obrigava a fazer tudo muito devagar. Mas ele era bem-humorado demais para dizer dessa forma, e a resposta foi: “Eu não faço nada, mas também não tenho tempo livre”. Rir de si mesmo era parte de sua virtude.

Exceto por um período curto no ano 2000, nunca moramos muito perto, de modo que em geral eu não vi meus avós mais de três vezes por ano entre a infância e o meu casamento, em 2010. Depois disso, me mudei para o Nordeste e nos vimos poucas vezes. A comunicação por telefone não era muito efetiva, porque ele já não ouvia muito bem. Ele se recusava a falar comigo, mandava recado pela minha vó ou pegava o telefone, falava sem parar e devolvia o aparelho sem ouvir a resposta. Eu achava divertido, claro.

Entre as tristezas da velhice esteve o fato de que meus avós viveram o bastante para testemunhar a partida de dois de seus filhos. Primeiro meu tio Osny, depois minha mãe. Foi no funeral dela que nos vimos pela última vez, há pouco mais de um ano e meio. Com minha mudança para o Rio de Janeiro, em setembro do ano passado, eu esperava poder ver meus avós com mais frequência, mas fui impedido, primeiro pelos afazeres da própria mudança, e depois pelos desdobramentos da pandemia. Nos últimos tempos eu soube das notícias pela minha vó e pela minha tia, que cuidava deles. Ainda não sei os últimos detalhes.

Como é natural, vivo agora uma mistura de sentimentos e pensamentos: saudades dele, preocupação com minha vó, tristeza por não estar com a família neste momento, alegria porque os sofrimentos dele terminaram. Penso em sua vida longa e rica a seu modo, da qual eu, na verdade, sei pouco; com certeza também pecou muito, e eu naturalmente guardo silêncio sobre o pouco que sei. Foi um homem comum sob todos os aspectos; não é o tipo de pessoa sobre quem serão escritas biografias daqui a cem anos. Teve muitos e variados sofrimentos, e vários de seus sonhos não foram realizados. Alguns talvez pudessem considerar que foi uma vida triste ou desinteressante; certamente não foi a de um herói da cultura moderna. Ao mesmo tempo, foi uma vida de muitas batalhas vencidas, de muita virtude e até heroísmo, o bastante para despertar empatia em pessoas com senso moral mais aguçado ou mais ao gosto tradicional.

Duvido muito que ele próprio se considerasse um herói ou um fracassado. Não combinaria bem com aquilo em que ele creu ao ouvir aquela pregação de um caixeiro-viajante nos anos 50: que nem nossas obras más estragam tudo, nem as boas fazem algo valer a pena. Não há nada de notável em sua história, senão o que Deus fez. E Deus fez muita coisa, muito mais do que aquele jovem agricultor caipira poderia ter sonhado. Olhando para o meu vô agora, eu vejo ao menos alguns fragmentos da beleza do sentido que Jesus construiu nele, e é impressionante a quantidade de graça que cabe em uma única vida, em uma vida comum.

Minha própria vida tem sido muito diferente da dele, mas é uma honra para mim seguir seus passos, duas gerações depois, no que pode haver de mais importante. Não sei quanto tempo ainda terei para isso, mas seu exemplo me anima a crer que a luta compensa. Meu vô é um vencedor: após mais de seis décadas de espera, ouviu de novo alguém dizer “Hoje estarás comigo no paraíso”. E desta vez foi com ele que Jesus falou.

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André Venâncio
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Written by André Venâncio

“Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança.”

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